29/08/2008

Allarve (IX)

Escarpão strikes again

© Topografia do nível superior do Algarão do Escarpão, efectuada pelo Núcleo de Espeleologia do Circulo Cultural do Algarve (NECCA).

Não resistimos a alarvices e, nessa base, vimo-nos obrigados a regressar a um assunto recorrente: o entulhamento do Algarão do Escarpão. A situação foi denunciada, há anos, pelo Centro de Estudos Espeleológicos e Arqueológicos do Algarve (CEEAA) mas, é verdade, a “coisa” continua na mesma: nada feito para tentar recuperar essa cavidade, enquanto a área envolvente continua a ser degradada q.b.. Por nós tudo bem (na verdade, tudo mal!), a gruta continua entulhada e nós continuamos a “bater na mesma tecla”, ou seja, vamos continuar a denunciar esta situação de todo censurável e inaceitável. Continuamos e continuaremos a denunciar esta situação bizarra porque pode ser que se aplique o ditado “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. E, neste momento, o que precisamos mesmo é que o buraco volte a ser reaberto…

Escarpão (Algarve) @ João Varela (2005)

Escarpão (Algarve) @ João Varela (2005)

Geoconservação

Dinossáurios
Algo está a mudar


[DESTAQUE ● jornal Forum Ambiente nº 184, 5 de Junho de 1998]

O I Encontro Internacional sobre Paleobiologia dos Dinossáurios trouxe a Portugal alguns dos mais ilustres especialistas mundiais. A conservação do património geológico, sobretudo na sua vertente paleontológica, centralizou as atenções.


PNSAC © Ruben Jordão (2003)


Dinossáurios
Algo está a mudar

O I Encontro Internacional sobre Paleobiologia dos Dinossáurios trouxe a Portugal alguns dos mais ilustres especialistas mundiais. A conservação do património geológico, sobretudo na sua vertente paleontológica, centralizou as atenções. É que as “pedras” também se preservam…

O I Encontro Internacional sobre Paleobiologia dos Dinossáurios - Programa de Musealização para Pistas de Dinossáurios em Portugal - decorreu, na semana passada (26 a 29 de Maio), no auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian. Organizado pelo Museu Nacional de História Natural (MNHN), Liga dos Amigos do MNHN e Grupo Paleo, o encontro reuniu alguns dos mais destacados especialistas mundiais na cidade de Lisboa.
Martin Locley, John Horner, Thomas Holtz e Eugene Gaffeney (EUA), Joaquín Moratalla e José Luis Sanz (Espanha), Philippe Taquet e Jean Le Loeuff (França), Ângela Milner (Grã Bretanha) ou Detlev Thies (Alemanha) foram algumas das presenças estrangeiras que brindaram a numerosa e interessada assistência. Galopim de Carvalho, Telles Antunes, Vanda Santos, Maria Helena Henriques, Mário Cachão e Delgado Rodrigues representaram a comunidade nacional. No último dia realizou-se também uma visita de estudo, integrada no programa do encontro, à jazida de icnofósseis da Pedreira do Galinha (Serra d’Aire) e ao Museu da Lourinhã/GEAL, onde os ovos de dinossáurios com embriões constituíram a principal atracção.

Marcos da história da Terra
A conservação do património geológico, sobretudo na sua vertente paleontológica, centralizou as atenções do I Encontro Internacional sobre Paleobiologia dos Dinossáurios. É que as “pedras” também se preservam. Galopim de Carvalho, director do MNHN, salientou que o encontro pretendeu chamar a atenção dos responsáveis para a necessidade de compatibilizar o apoio ao desenvolvimento desta área científica, em conformidade com a importância de Portugal, no que se refere à quantidade e à qualidade do património geológico. Paralelamente, o encontro pretendeu despertar as mesmas entidades para a necessidade de preservar e/ou musealizar condignamente algumas das mais importantes jazidas de icnofósseis portuguesas (e não só).
Portugal apresenta uma significativa geodiversidade, ou seja, é rico em geo-recursos culturais (alguns de reconhecido valor supranacional), mas estes estão completamente desprotegidos do ponto de vista legal. Na legislação portuguesa os “geótopos” não têm qualquer existência formal, ao contrário do que acontece com os biótopos. O conceito de recurso geológico está contemplado, mas refere-se apenas a recursos económicos existentes na crusta terrestre: recursos hidrotermais ou geotérmicos, depósitos minerais ou águas de nascente. Os recursos geológicos de índole cultural, que são igualmente recursos não renováveis e susceptíveis de aproveitamento económico, não são considerados. Particularmente vulneráveis por não serem contemplados, nem na legislação sobre protecção ambiental, nem na legislação sobre exploração de recursos geológicos, os geo-recursos culturais estão assim à mercê da destruição, muitas vezes devido à ignorância ou incúria, outras vezes intencionalmente, mas sempre de forma impune.
Ao contrário do que acontece com a arqueologia, em que é obrigatória a comunicação dos achados e a autorização para escavação, não existem normas no tocante à paleontologia. Por outro lado, enquanto o espólio arqueológico é propriedade do Estado, o património paleontológico é de quem o “apanhar”. A comunicação de achados paleontológicos, a autorização para recolha ou escavação, a posse ou venda de espécimes descobertos, nada está enquadrado por legislação. Esta é completamente omissa, deixando o caminho aberto à saída de espólio para o estrangeiro e/ou para colecções particulares.

Musealização e conservação
Os investigadores são unânimes em defender a necessidade de legislação que enquadre o património geológico português. Os instrumentos legais actualmente em vigor sobre as áreas protegidas são demasiado vagos para abarcarem os testemunhos da história da Terra. A criação da figura de geomonumento ou geo-recurso-cultural evitaria a necessidade de recorrer à insuficiente legislação existente, como aconteceu com a classificação das jazidas de pegadas de dinossáurios, ao abrigo da figura de “Monumento Natural”. Os investigadores defendem igualmente que o património geológico deve ser alvo de urgente inventariação e classificação, assim como de uma adequada divulgação junto do público. O MNHN tem vindo a desenvolver, nos últimos dez anos, diversas iniciativas tendentes à integração de pistas de dinossáurios e de outras ocorrências consideradas geomonumentos ou geo-recursos culturais, numa estrutura museológica inovadora, que designou de “Exomuseu da Natureza”. A ideia de um exomuseu remonta a 1989 e surgiu da preocupação face à preservação e dinamização de sítios de interesse geológico. O exomuseu consta de um conjunto de ocorrências naturais de valor monumental, incluindo todas as ocorrências valiosas para a interpretação da história da Terra: geo-recursos de elevado valor científico, pedagógico e cultural e de interesse local, regional, nacional ou mesmo internacional (Património da Humanidade). Alguns desses locais podem vir a constituir pólos de desenvolvimento, numa perspectiva de turismo alternativo, cultural e ambiental, área em franco desenvolvimento numa época de crescente interesse pelo contacto com a natureza. Destituído de enquadramento legal, o exomuseu da natureza já existe no terreno e na letra dos acordos estabelecidos entre o MNHN e algumas autarquias. Salienta-se, nesse âmbito, o Geomonumento do Monte de Sta. Luzia (Viseu), projecto que valeu à Câmara Municipal de Viseu o Prémio Nacional do Ambiente de 1997. [29/08/2008: Outros exemplos não tiveram a mesma sorte, como a Gesseira de Santana que, após proposta de classificação, continuam a aguardar melhores dias]
Por vezes é difícil defender que “um monte de pedras” é uma ocorrência, não só singular, como de incalculável valor científico. No entanto, os inúmeros apoios com que o I Encontro Internacional sobre Paleobiologia dos Dinossáurios contou levam a pensar que o interesse pelo património geológico é crescente. Para Galopim de Carvalho “algo está a mudar”.

PNSAC © Ruben Jordão (2003)


Cabo Mondego
Um escândalo nacional

O “hot spot” do I Encontro Internacional sobre Paleobiologia dos Dinossáurios foi protagonizado por Maria Helena Henriques. Esta professora de paleontologia, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, alertou para a importância e urgente necessidade de protecção do Cabo Mondego. É que Portugal arrisca-se a perder o limite internacional entre o Aaleniano e o Bajociano, facto que foi classificado como um “escândalo nacional”, nas palavras de Galopim de Carvalho.
A selecção e definição de limites estratigráficos tem constituído uma das principais actividades da Comissão Internacional de Estratigrafia (ICS), integrada na União Internacional das Ciências Geológicas (IUGS). O perfil da passagem do Aaleniano-Bajociano no Cabo Mondego foi seleccionado pelo Grupo de Trabalho do Bajociano, em 1994, e a proposta foi ratificada pela IUGS, em 1996. As arribas do Cabo Mondego funcionam assim como padrão internacional. No entanto, apesar de formalmente estabelecido e internacionalmente reconhecido, o estratotipo do Bajociano do Cabo Mondego ainda não está classificado como Área Protegida.
A passagem do Aaleniano-Bajociano, no Cabo Mondego, integra-se numa série praticamente contínua de sedimentos marinhos e fluvio-lacustres, que se estendem desde o Toarciano superior até ao Caloviano médio, atingindo uma espessura superior a 400 metros. Esta sucessão encontra-se bem exposta ao longo da praia, entre Murtinheira e Buarcos. Saliente-se, ainda, que o Cabo Mondego foi um dos primeiros locais do mundo onde se encontraram pegadas de dinossáurios. Dada a grande riqueza em fósseis e a excelente observação dos estratos que os incluem, este local apresenta um grande valor pedagógico, sendo frequentemente utilizado para visitas de estudo de diversos níveis de ensino.
O processo de classificação do Cabo Mondego remonta aos tempos dos Governos provisórios do pós-25 de Abril. Em 1978, foi criado um grupo de trabalho para estudar a protecção do Cabo Mondego e, em 1979, apresentada uma proposta de criação da Reserva Natural Geológica do Cabo Mondego. A Reserva chegou a ser aprovada pelo Secretário de Estado de então, mas incompreensivelmente não avançou. Nos anos 80, a área foi integrada na lista de biótopos Corine, sem quaisquer melhorias no terreno. Mário Soares, durante a presidência aberta dedicada ao ambiente (1994), visitou o Cabo Mondego, tendo criticado a autarquia e os responsáveis da Cimpor pelo estado deplorável da área, mas também de pouco serviu. A Direcção de Serviços da Conservação da Natureza integrou esta área, em 1996, na proposta preliminar da Lista Nacional de Sítios da Rede Natura 2000. Incluído no Sitio 35 (Dunas de Mira), o Cabo Mondego ficou mais uma vez a aguardar a devida e condigna classificação e protecção legais. Apesar de terem passado mais de 20 anos sobre a primeira tentativa de classificação, esta área ainda não se encontra protegida e o avanço da exploração de calcário da pedreira da Cimpor, as lixeiras aí existentes, a pilhagem de fósseis e o abandono a que está votada, põe em risco a sua integridade.
Os investigadores esperam que o processo de classificação do Cabo Mondego não passe mais duas décadas no Instituto de Conservação da Natureza. A acontecer, o país estará a aguardar “um escândalo nacional”.


[29/08/2008: O processo de classificação do Cabo Mondego é uma situação que se arrastou por bastantes anos. A consulta pública para a classificação como Monumento Natural estendeu-se de 8 de Setembro a 20 de Outubro de 2006 e, finalmente, foi criado o Monumento Natural do Cabo Mondego através da publicação do Decreto Regulamentar 82/2007, de 3 de Outubro.]


“Icnotopia”
A utopia das pegadas de dinossáurios


As pistas de dinossáurios, em Portugal, saíram do anonimato para se tornarem amplamente conhecidas, não só a nível nacional, como também internacional. Nos últimos cinco anos foram referenciadas mais de 25 jazidas, sendo algumas delas das mais importantes a nível mundial. Feito a que não está alheio o empenhamento de Galopim de Carvalho, o director do Museu Nacional de História Natural (MNHN), e o trabalho de Vanda Santos, a única especialista portuguesa em pegadas de dinossáurios. A jazida da Pedreira do Galinha apresenta as mais longas pistas de saurópodes conhecidas mundialmente (142 e 147 metros de extensão, respectivamente). Recentemente foram descobertas pegadas tridáctilas perto dessa pedreira, provavelmente as mais extensas referenciadas no Jurássico médio. A jazida da Pedreira do Avelino revela a presença de pegadas do mais pequeno saurópode conhecido na Europa. A jazida da Pedreira da Ribeira do Cavalo possuía a maior pegada de megalosaurídeo conhecida (mas infelizmente encontra-se destruída). A jazida da Pedra da Mua revela a existência, única na Europa, de comportamento gregário entre saurópodes. As jazidas do Cretácico são menos abundantes, mas incluem as famosas pistas de Carenque (rebaptizadas como “Pego Longo”). Quando a jazida de Carenque foi descrita por Vanda Santos, em 1991, era o maior trilho de dinossáurios até então conhecido (127 metros de extensão).
As pistas de dinossáurios constituem geomonumentos raros e geo-recursos culturais não renováveis de importante significado científico e pedagógico. Estas jazidas podem, além disso, constituir pólos de grande interesse turístico, contribuindo inclusivamente para o desenvolvimento local. A musealização in-situ surge, assim, como uma forma de divulgar, valorizar e conservar esse património geológico.
O processo de musealização está-se a processar no tocante às jazidas de Pedreira do Galinha (PNSAC), Pego Longo e Praia Grande (Sintra), Pedra da Mua, Lagosteiros e Avelino (Sesimbra). Galopim de Carvalho, “o homem dos dinossáurios” como já foi apelidado, espera que as jazidas de Cucos (Torres Vedras), Serra da Pescaria (Nazaré) e Serra de Bouro (Caldas da Rainha), ainda em estudo, venham igualmente a integrar o projecto do “Exomuseu da Natureza” proposto pelo MNHN da Universidade de Lisboa. A “icnotopia” ou utopia das pegadas de dinossáurios está a concretizar-se aos poucos, mas solidamente. As propostas não param, bem como o trabalho.

28/08/2008

Auto-resgate

Fonte: Espeleo Virtual

27/08/2008

Ai o raio das ventoinhas

Uma notícia no Público on line, da autoria do jornalista Nicolau Ferreira, deu conta de um estudo no qual se chegou à conclusão que a elevada taxa de mortalidade de quirópteros provocada por aerogeradores é devida a hemorragias internas. O estudo, conduzido por Erin Baerwald, da Universidade do Calgary (Canadá), foi publicado ontem na revista científica Current Biology. O artigo em causa refere que o movimento das pás causa uma diminuição da pressão atmosférica, responsável pelo rebentamento dos vasos sanguíneos dos pulmões desses mamíferos.
Desde que os aerogeradores começaram a ser instalados por todo o mundo que surgiram cadáveres de aves e de morcegos na envolvente dessas instalações. Curiosa foi a ausência de feridas ou hematomas externos em muitos dos morcegos, o que tornava inexplicável a razão da morte desses mamíferos.
A proporção entre morcegos e aves mortas é preocupante. Há locais em que o número de cadáveres de morcegos é quatro vezes superior ao de aves, o que é bastante estranho tendo em conta que o sonar detecta melhor objectos em movimento do que parados.
Dos 75 morcegos que Erin Baerwald dissecou, 69 apresentavam hemorragias internas. “Uma descida na pressão atmosférica ao redor das pás das turbinas é uma ameaça indetectável e explica o grande número de fatalidades de morcegos”, afirmou o cientista.
Os investigadores portugueses também já detectaram este fenómeno. Uma das primeiras barreiras para se entender a proporção do problema é a quantificação do mesmo. “Os corpos são rapidamente apanhados pelos predadores e é geralmente difícil encontrar os cadáveres dos morcegos”, explicou ao PÚBLICO Jorge Palmeirim, biólogo e professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Entretanto já existem propostas para lutar contra o problema: por exemplo, parar as turbinas durante os meses em que os morcegos migram. Segundo Nicolau Ferreira, “o biólogo sugere a paragem das turbinas durante as alturas em que existe menos vento, que é quando os morcegos estão mais activos nessas zonas.
Já tinhamos postado acerca destas ventoinhas que teimam em adulterar a paisagem de muitas elevações por esse país fora, também já conheciamos o fenómeno da mortalidade de diversas espécies de avifauna e de quirópteros, bem como o ruído perturbador (e desconhecido de muitos) que essas "geringonças" produzem, mas rebentamentos de vasos sanguíneos é obra! Ainda bem que o Instituto da Conservação da Natureza e, agora, da Biodiversidade autoriza a instalação destas "maquinetas", tão amigas do ambiente e promotoras da tão propalada e importante biodiversidade, em Áreas Protegidas!


Allarve (VIII)

Horror ao vazio

E ainda dizem que a natureza tem horror ao vazio… Não é tão grande quanto o buraco do Ozório (desculpem, do Ozono queria eu dizer) mas é de veras impressionante. Os algares de abatimento são mais ou menos frequentes nas áreas cársicas, tanto em Portugal como no estrangeiro, mas com estas dimensões é um fenómeno bem mais raro. Sorte a nossa! Se começassem a surgir "grutinhas" destas no carso algarvio lá teríamos de dar mais importância à paisagem, que mais não fosse pela chatice de desaparecerem umas casinhas de campo de quando em vez. Não é que na costa algarvia a coisa esteja muito famosa, de vez em quando lá se dão umas derrocadas e até se conhece um caso de uma cavidade de dimensões consideráveis (a Catedral) cujo tecto abateu há cinco anos. Mas estejam descansados porque os fenómenos geológicos em regra duram muito tempo, de tal modo que geralmente são medidos em milhões de anos (o que não impede que uma derrocada ocorra de forma instantânea!). Podem ficar bem descansados sobretudo se não forem as vossas casas que se encontram alcandoradas na borda de uma arriba ou, por grande azar, sobre um vazio.
Catedral (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)

Allarve (VII)

O resto é paisagem...

Algarve Central © Pedro Cuiça (2008)

Há uns anos atrás era comum ouvir-se uma graçola sobre Portugal ser Lisboa e o resto ser paisagem. Frase que colocaria muitos dos nortenhos da Gloriosa furibundos ou os raríssimos independentistas do Reino do Algarve de cabelos em pé, entre outros susceptíveis regionalistas. De facto, essa frase traduzia simplesmente, de modo jocoso e caricatural (claro está), a realidade de um país ainda pouco urbanizado e maioritariamente rural… Bairrismos à parte, o que nos motiva esta posta é precisamente a paisagem. Mais precisamente, a importância da paisagem e a necessidade da sua preservação. Tema, aliás, que temos vindo a “bater” nesta sequência de postas de Verão dedicadas ao Allarve (perdão, ao Algarve) e, já agora, a todos aqueles que por aí andam a gozar férias. Para além de se entregarem a banhos de sol e de mar, entre outros, pode ser que arranjem um pouco de tempo para meditarem sobre as peculiaridades dessa região.
Não nos detendo sobre o curioso paradoxo de inúmeras pessoas criticarem o Algarve à exaustão (ele é o caos urbanístico, ele são as filas de trânsito, ruído, falta de água, preços inflacionados, mar poluído, praias concessionadas, ementas em inglês, etc., etc., etc.), certo mesmo é que, chegando o Verão (sobretudo o mítico mês de Agosto), todos lá vão “bater com os costados”. Portanto, passemos, então, à paisagem…
Sim, a paisagem: essa “coisa” que, para além de Lisboa, seria o resto de Portugal. O país é pequeno mas, só por isso, já se evidenciaria a suma importância da paisagem. No entanto, e para que não restem dúvidas sobre a importância da mesma, lembramos que até existe um curso universitário - arquitectura paisagista - dedicado exclusivamente à dita, tal como disciplinas tão específicas como a ecologia da paisagem. É certo, também, que hoje em dia já existem cursos universitários sobre tudo e mais alguma coisa, mas pronto, é mais um ponto a favor da paisagem, não é? Sempre ficamos mais descansados por saber que doutas mentes se debruçam sobre estas matérias :)
De forma simplista poderemos dizer que a paisagem é o território que abarcamos visualmente, que nos rodeia e é perceptível através da visão. A paisagem surge como o “resultado, observado pelo Homem, de um sistema complexo e dinâmico de muitos factores naturais e culturais (rocha-mãe, solos, água, relevo, clima, vegetação, uso do solo, estrutura fundiária, povoamento, caminhos e infra-estruturas, etc.), que se influenciam mutuamente e se modificam ao longo do tempo” (Pinto-Correia, 2005).
A paisagem não é, pois, moldada apenas por processos geo-bio-fisico-químicos, nem apenas por acções humanas. “Os processos físicos e as acções antrópicas em conjunto com o raciocínio humano moldam e criam a paisagem. As três dimensões (a geosfera física, a biosfera e a noosfera mental) estão intimamente relacionadas e influenciam-se mutuamente e são afectadas pelas dimensões temporais e espaciais.” (Tress et al., 2000 in Bastian, 2004).
A paisagem surge como um sistema dinâmico onde os diferentes factores, naturais e culturais, se influenciam entre si e evoluem em conjunto, resultando numa configuração particular de relevo, coberto vegetal, uso do solo e povoamento. A percepção da paisagem é, pois e antes de mais, estética e emocional. E, nesse contexto, surge como primordial para o nosso bem-estar mental, sem esquecer a importância de uma paisagem natural ou rural no que concerne à saúde física das pessoas, nomeadamente no tocante à qualidade do ar e à produção de alimentos saudáveis.
Será do conhecimento comum que o conceito de ruralidade diz respeito ao que é relativo, próprio ou pertencente ao campo ou à vida agrícola. No entanto, nos tempos que correm, o conceito de “rural” tende a desvincular-se do que é relativo às actividades agrícolas, na medida em que essas actividades têm vindo a registar uma crescente perda de importância, tanto económica como social, nas áreas rurais, enquanto outras funções, não produtivas, vão sendo valorizadas e assumem maior importância. Por outro lado, as diferenças entre as populações rurais e as urbanas começam também a esbater-se, aumentando a dificuldade de definir o que é urbano e o que é rural.
Actualmente, “o rural e o urbano só se distinguem por referência mútua” (Baptista, 1993), na medida em que parece ser evidente que estas duas realidades têm os seus limites cada vez menos bem definidos, podendo verificar-se que “as diferenças culturais (…) se esbateram e avançou-se na homogeneização dos saberes, hábitos e comportamentos (Baptista, 2000)”.
Numa perspectiva abrangente e holística, Antrop (2005) considera que a multifuncionalidade da paisagem diz respeito aos “usos simultâneos ou consecutivos de um pedaço de terra, sem serem feitas alterações fundamentais na estrutura ou morfologia da paisagem”. Ou seja, é possível o surgimento de outras actividades, a par das tradicionais agricultura e pastorícia, que valorizem o espaço rural sem o descaracterizar e/ou adulterar de forma mais ou menos irreversível. Portanto, não se trata de preservar os últimos dos moicanos ou ser contra o desenvolvimento e as alterações inerentes ao mesmo; trata-se simplesmente de ser contra a degradação paisagística, contra a delapidação do património geológico, contra a diminuição da biodiversidade ou contra a homogeneização cultural. O mundo é composto de mudança e, por isso, não se deve (nem pode) parar o desenvolvimento, mas que seja um desenvolvimento sustentável. Um desenvolvimento que tenha em vista, antes de tudo o mais, a qualidade de vida das populações e a preservação/conservação da natureza.

Algarve Ocidental © Pedro Cuiça (2008)
Algarve Central © Pedro Cuiça (2008)
Algarve Central © Pedro Cuiça (2008)

Algarve Central © Pedro Cuiça (2008)

26/08/2008

Allarve (VI)

As cidades e as Serras

Algarve Central © Pedro Cuiça (2008)

As cidades são, muitas vezes, acusadas de comportarem inúmeras corrupções morais em relação à sã pureza dos campos, tornando-se, no espírito de alguns, em meios deletérios que comprometem irremediavelmente a saúde das populações aí residentes. Esta é uma visão que se compreenderá por parte daqueles que habitem em gigantescas, caóticas e poluídas urbes, no entanto tal é difícil de entender em cidadezinhas de província, com milhares de habitantes, sendo certo, é claro, que no tocante à qualidade de vida se podem atingir vivências infernais até na mais pequena aldeola. Não será necessário comparar Faro à cidade do México, Loulé a São Paulo ou Olhão a Teerão, pois não?
O aumento da população nos centros urbanos do litoral de Portugal, e áreas limítrofes, contrapõe-se à respectiva “desertificação” do interior do país. A essa procura de urbanidade, como habitat e sobretudo lugar de trabalho, corresponde simultaneamente uma necessidade de fuga a esses meios urbanos, o mais frequentemente possível, através de migrações periódicas ou até, em última instância, acabando por ir viver, a tempo inteiro ou parcial, a quilómetros de distância num falso campo, mito do regresso à natureza. Estranho paradoxo em que, por um lado, as populações fogem do que resta do mundo rural e, por outro, anseiam por voltar às "origens". Acontece que esse regresso, geralmente temporário, é acompanhado por todos os “tiques” urbanos entretanto adquiridos.
Muitos cidadãos urbanos viverão saudosos do campo ou das suas cambiantes e irão tendencialmente procurar à volta das suas habitações, ou o mais perto destas, um cenário que lhes recorde aquilo que acalentam: uma "espécie de natureza". A oferta das agências imobiliárias é, a esse respeito, evocadora dos seus desideratos… A “vista” é assegurada pela implantação preferencial sobre topografias acidentadas, idealmente no topo de elevações, que permitam pôr em evidência amplas panorâmicas. A “natureza” é representada pelo local à beira de um “curso de água” ou de um “matagal”, pelo terreno e o seu arranjo, a plantação de árvores ou a disposição de relvados.
Na medida em que as populações urbanas são cada vez mais numerosas e em que cresce a proporção dos cidadãos possuidores de meios suficientes para participar nesta projecção do seu quotidiano sobre áreas cada vez mais extensas, cada vez mais dispersas e cada vez mais adulteradas, o espaço originalmente rural (na área de extensão dos apetites urbanos) torna-se um “bem raro”, um bem caro e uma base de investimentos especulativos. Nesse contexto, multiplica-se a concorrência entre as utilizações rurais e as urbanas, com saldo geralmente negativo para as primeiras em detrimento das segundas!
Na periferia imediata dos aglomerados, essa concorrência rural versus urbano faz-se sentir, sobretudo, na instalação de estabelecimentos de serviços, mercados grossistas, entrepostos e aeroportos. Depois, a especulação turística disputa o solo às formas tradicionais de exploração, especialmente nos locais propícios à organização de lazeres recomendáveis pela moda, tais como as praias.
Nos países densamente povoados e fortemente urbanizados, o território tem tendência para ser inteiramente integrado nos ritmos de vida urbana e é preciso, para mudar de meio, procurar outros sítios, frequentemente muito longe, nos países subdesenvolvidos que, por sua vez, entram no espaço de serviço das grandes regiões industriais e urbanas e perdem rapidamente a sua personalidade, características distintivas e tradições.
Para além da adequação ou não de determinada parcela de território comportar a instalação de áreas residenciais, o estudo dessas áreas deve colocar em primeiro plano a taxa de ocupação do espaço, ou seja, a densidade de construção. Esta relação deve ser ponderada por coeficientes qualitativos de acordo com a maior ou menor perceptibilidade da densidade. Esta perceptibilidade será tanto maior quanto a densidade se acompanha de promiscuidade, podendo definir-se essa promiscuidade como a tomada de consciência permanente da aglomeração excessiva através de todas as restrições associadas. A densidade de construção e a perceptibilidade dessa densidade verificam-se quer em zonas urbanas, quer em zonas “campestres”, razão pela qual uma determinada área, inicialmente caracterizada por altos padrões de qualidade ambiental, pode sofrer fortes pressões urbanísticas e tornar-se pura e simplesmente promíscua, descaracterizada e com baixos índices de qualidade. Será que estar barricado por muros e/ou vedações na sua casa de campo rodeada por outras residências e vizinhos contíguos será preferível a deixar de ouvir os vizinhos na casa de banho do andar de cima?
Em ambas as formas de edificação (vertical e horizontal) e em densidades elevadas verifica-se a materialização da promiscuidade: o ruído (que, em parte, se traduz por uma percepção ou uma representação da presença dos vizinhos), a convergência, a horas fixas, para os mesmos espaços de serviços comuns ou outros, etc., etc., etc.. Curiosamente, para uma densidade igual, a sobreposição em andares múltiplos (em prédios), enquadrados por espaços abertos, é menos constrangedora do que um "amontoado" horizontal.
No plano estrito da ocupação do solo, o meio ambiente não é traduzido por uma simples transposição da densidade. A sua apreciação resulta da qualidade ou, no sentido mais lato, das formas de utilização dos espaços e dos volumes consagrados ao alojamento ou outras actividades. Nesta base, pode empreender-se a interpretação das preferências, mais ou menos claramente expressas, em relação aos diversos tipos de construção, de estéticas e tamanhos variados, casas individuais concentradas ou espalhadas, etc..
A qualidade do alojamento é percebida não só em termos de disposição, de comodidades interiores e de isolamento, mas também em função do seu “meio ambiente” no sentido etimológico e restrito da palavra, quer dizer, do espaço panorâmico e de utilização quotidiana que o rodeia, da envolvente. Uma área urbana, por exemplo uma cidade, bem estruturada e com uma densidade de construção apropriada, com áreas residenciais, de lazer e de serviços integradas, é certamente diferente de um dormitório suburbano carente dos mais elementares serviços. É bom viver em comunidade (algo em vias de extinção), poder contar ou simplesmente interagir com a vizinhança ou, simplesmente, poder sair de casa e ir à esquina comprar pão! Desta forma talvez fosse possível dispor de áreas urbanas e de áreas rurais ou naturais de qualidade, ao invés de uma generalizada descaracterização e de um crescente desordenamento do território, com claras vantagens no que concerne à preservação do património geológico, da biodiversidade e da paisagem, não esquecendo os aspectos culturais e tradicionais das populações.
A bipolaridade que se verifica nesta pós-modernidade hedonista e solipsista aconselharia uma reflexão profunda acerca da relação do Homem face a si mesmo e ao meio ambiente no qual habita. Talvez fosse interessante questionar e rever diversos dos paradigmas, muitas vezes contraditórios, que nos conduzem. Poderíamos começar por nos ver como cidadãos do mundo, em prol do todo e não das partes. E, em vez de considerar a Terra como uma aldeia global (qual laranja normalizada, de costumes e hábitos uniformizados), apostar na globalidade de diferentes aldeias e extasiar-se face à diversidade de costumes, hábitos e tradições, seres vivos e paisagens. A unidade na diversidade será certamente o caminho a seguir…

Algarve Central © Pedro Cuiça (2008)
Algarve Central © Pedro Cuiça (2008)

25/08/2008

Allarve (V)

O que é natural é bom!

Mortero de Astrana (Cantábria) © Pedro Cuiça (2007)

A propósito de motivações, concepções alternativas e confusões de alguns (ou até de muitos) “urbanóides” no tocante à sua relação para consigo próprios e para com a vida que levam, ocorre-me o exemplo de uma amiga, de outra que o deixou de ser e, sobretudo, de um trecho de um livro que li há bastante tempo: O Meio Ambiente do geógrafo francês Pierre George (Edições 70, 1984) [L’Environnement (Presses Universitaires de France, 1971)].
É certo que “cada um sabe de si e Deus sabe de todos” (dizem) e mais certo ainda que não tenho nada a ver, nem me interessa, a vida dos outros e, portanto, nesse particular estamos esclarecidos. Mais, sou um tipo urbano (que mais não seja porque sempre vivi em cidades) e não estou também isento da minha dose de confusões, portanto nesta matéria também estaremos esclarecidos. A razão de analisarmos determinadas confusões não se prende com a “coisa em si” mas com as consequências, nomeadamente ambientais (e mais particularmente no tocante ao carso), resultantes dessas diletâncias intelectuais e insuficiências racionais e/ou emocionais.
Mas regressemos aos exemplos de que falamos. A primeira amiga vive num aglomerado suburbano em que nem se vê o mar e, no entanto, diz que vive junto à "praia"! A segunda, não passando sem os “encantos” de noitadas urbanas e quejandos, vem agora cantar loas à vida no “campo”. Une-as idênticas disfunções mentais e a necessidade de, após as suas vivências de "praia" e de "campo", respectivamente, precisarem ainda de mais “natureza”. Nem mais!... :)
Quanto ao texto aqui vai:
O meio ambiente identifica-se então, para uma minoria mais ou menos numerosa, com a “residência secundária”, a casa de fim-de-semana mais ou menos afastada do bairro urbano de habitação principal. A sua localização é, geralmente, eloquente quanto ao que o citadino procura para compensar as suas frustrações: o campo, o silêncio, o enquadramento de vegetação natural, um curso de água ou a margem de um lago, um tipo de habitação evocando, frequentemente de um modo muito artificial, uma casa rural convencional, contactos com camponeses mais ou menos verdadeiros… Esta mudança de meio ambiente, ritmada pela sucessão das semanas, já não é suficiente. O citadino incorpora ao seu meio ambiente espaços ordenados onde lhe são assegurados um ou vários dos temas essenciais à sua busca da natureza: a costa de clima luminoso, durante o Verão, a montanha nevada e cheia de sol, no Inverno. Adquire, por um preço relativamente elevado, o direito de utilização destes bens raros durante algumas semanas. O “produto” que lhe irão vender será tanto mais caro, e a sua venda tanto mais lucrativa, na medida em que o seu preço vai aumentar acompanhando-o de serviços, de cenários, fazendo dele um meio ambiente “fabricado”, fonte de grandes operações de embelezamento das regiões de turismo de Verão e de Inverno, transformando sectores inteiros de espaço rural em espaço de serviço para os lazeres dos citadinos.
De uma forma geral, a incorporação de fracções específicas de um território ao espaço de serviço de grandes cidades, no interior de um estado ou à escala internacional, implica transformações importantes deste território. Trata-se de o tornar acessível a uma circulação de massas, portanto, de o tirar do seu isolamento. Ele perde,
ipso facto, todos os caracteres que poderiam derivar do seu isolamento, particularmente a capacidade de conservação de certas espécies vegetais e sobretudo animais. Escapa à protecção natural que este isolamento implicava.
Em segundo lugar, deve ser embelezado quer para uma estada quer para uma simples passagem. É, portanto, um lugar de experiências e de especulações imobiliárias, com diversificação de construções segundo a clientela.
Em terceiro lugar, deve atrair pela diversidade e qualidade das suas diferentes instalações, pelo sossego, desporto, diversas distracções: a especificidade de um espaço de lazer não é mais do que uma dominante à volta da qual é necessário assegurar a ocupação a tempo pleno de todos os utentes. Uma grande estação turística ou uma grande região turística é uma espécie de grande
kermesse que oferece, à volta de um tema principal - a neve ou o mar - os mais diversos espectáculos, os jogos de casino, assim como a possibilidade de proezas desportivas ou de espectáculos desportivos. Quanto às curiosidades naturais, devem ser tão comodamente acessíveis como uma sala de museu. (…) É a esta visão da natureza que os citadinos se arriscam a estar condenados em todas as regiões escolhidas, graças aos seus privilégios físicos, para serem as antenas do meio ambiente urbano. Tornou-se banal, hoje em dia, para oferecer aos banhistas cada vez mais numerosos a vizinhança de praias, construir edifícios de quinze a vinte andares ao longo de toda a costa. Os Americanos, que tinham muito espaço, deram o exemplo com Miami, Copacabana, Guarujá, São Vicente, Mar de la Plata, Miramar… A Europa seguiu-os. (…)
Estes embelezamentos, e os danos que deles resultam nas paisagens naturais, são irreversíveis, e é o que faz reflectir, tanto mais que certos abalos provocados nos frágeis equilíbrios naturais podem desencadear catástrofes. O superpovoamento temporário, a superocupção de encostas mal estabilizadas, a tentação de utilizar todo o espaço para nele realizar operações rendosas e dar satisfação ao maior número de utentes, criam graves tensões no plano da segurança. (…) Excluindo estas ameaças de acidentes graves, felizmente bastante raros - mas cuja frequência se arrisca a aumentar devido à sobrecarga - certos caracteres fundamentais dos espaços de lazer esbatem-se progressivamente. Recomendou-se, e procurou-se, frequentá-los para escapar às agressões do meio urbano: a pressão da multidão, o ruído, a circulação, a moldura de betão, de vidro e de aço, as solicitações do comércio com publicidade luminosa e sonora… Mas o que resta, numa estação de desportos de Inverno ou numa grande praia arranjada, da integridade do quadro natural, da calma, da pureza do ar e das águas, da segurança, do retomar o contacto com outros tipos de homens e de actividades? De resto, há já muito tempo que se deixou de procurar captar a clientela propondo-lhe o que se sabe que já não se pode oferecer-lhe, e que apenas tem interesse propor-lhe um prolongamento da cidade estruturada à volta de uma actividade ou de um complexo de distracção específico do lugar ou da estação.

Carvoeiro (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)

22/08/2008

Allarve (IV)

Caminhos públicos passam a privados?!

Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)

Pelo que se passa na Goldra e noutras áreas da região e do país, em termos de construção desregrada e vedação de terrenos, é fácil depreender que o exposto no Capitulo I da Constituição Portuguesa, sobre Direitos, liberdades e garantias pessoais, acerca do Direito de deslocação e de emigração (ponto 1 do Artigo 44º), será um ideal a atingir mas, se não impossível, difícil de pôr em prática: “A todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional”.
Ao nível da jurisprudência, têm sido dois os critérios preconizados para reputar determinado caminho como público. Um deles – expresso em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Abril de 1970 – onde se argumenta que “o simples uso directo e imediato dum caminho pelos moradores das povoações não lhe concede carácter público, pois é indispensável provar-se que foi produzido ou legitimamente apropriado por pessoa colectiva de direito público e que por ela é administrado”. Outro - expresso em Assento, do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 19 de Abril de 1989 - onde se fixou, na altura com força obrigatória geral, que "são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”. Saliente-se que hoje já não vigora o regime dos assentos a fixar doutrina com a força obrigatória geral que era instituído pelo artigo 2º do Código Civil. De acordo com este segundo critério não será, pois, necessário que o caminho tenha sido apropriado ou construído pelo Estado ou por uma autarquia local e que esta tenha praticado actos de administração, jurisdição ou conservação. Muito embora se reconheça tratar-se de matéria sujeita a diversas interpretações, poderemos genericamente reputar um caminho como caminho público pela circunstância de certa faixa de terreno estar afecta à circulação da generalidade das pessoas. Mas não nos podemos esquecer de que tal se trata de uma generalização ou simplificação.
É de fundamental importância efectuar uma análise mais aprofundada da doutrina perfilhada no Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Abril de 1989, tendo em conta as diversas interpretações que possam ser avançadas e suas implicações. A qualificação de um caminho como sendo público, face à doutrina vertida no referido assento pressupõe a verificação de dois requisitos: a imemorialidade da utilização e a utilização pelo público em geral.
Não basta, pois, a existência de um acesso aberto a pessoas determinadas ou a um círculo determinado de pessoas para considerar a utilização pelo público em geral, assim como também a imemorialidade do uso só se verificará se a autoridade competente provar que o começo do uso directo e imediato pelo público não faz parte da memória dos vivos. Nestes termos, se um determinado caminho se encontra no uso directo e imediato do público desde tempos anteriores à memória das pessoas vivas, que desde sempre por lá passaram sem oposição de ninguém, estamos perante um caminho público insusceptível de apropriação privada.
O assento de 19 de Abril de 1989 deve, porém, ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir a sua afectação à entidade pública, ou seja, à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância. Na falta deste requisito e, em especial, quando se destinem apenas a fazer ligação entre caminhos públicos por prédio particular com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, os caminhos devem classificar-se como atravessadouros. No entanto, será de salientar que os atravessadouros, por mais antigos que sejam, foram abolidos pelo art. 1383.º do Código Civil, desde que não se mostrem estabelecidos em proveito de prédios determinados, constituindo servidões. Note-se, porém, que também são reconhecidos os atravessadouros com posse imemorial, que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não existirem vias públicas destinadas à sua utilização ou aproveitamento de uma ou outra, bem como os admitidos em legislação especial (segundo o art. 1384º do Código Civil). Se a passagem se traduz num poder conferido a um proprietário de um prédio encravado de aceder à via pública, então estaremos perante uma servidão legal de passagem, estaremos perante um caminho de servidão.
As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família. (art. 1547, nº 1, do Código Civil). As servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos. (art. 1547, nº 2, do Código Civil). Pela constituição da servidão de passagem é devida a indemnização correspondente ao prejuízo sofrido. (art. 1554º do Código Civil). A mudança de um leito de servidão, que passe a localizar-se em outro local ou sítio, pertencente ainda ao mesmo prédio – mudança do locus servitutis – não implica a constituição de uma nova servidão de passagem, por contrato. Pese embora se altere o traçado da servidão, “o respectivo direito é o mesmo” pelo que não se inicia uma nova situação possessória.
Por último, será conveniente definir a noção de usucapião: “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação”. Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse. Se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública.
Havendo dúvidas sobre a qualificação da dominialidade de um caminho, competirá aos tribunais comuns, na sequência do princípio da separação de poderes previsto na Constituição da República Portuguesa (CRP), decidir acerca da mesma.
O que acontece na prática é que caminhos públicos, por manifesto desinteresse dos municípios e das juntas de freguesia, são muitas vezes apropriados e à falta de contestação passam a ser privados. Ao menos nisto há alguma coerência: se as entidades (ir)responsáveis deixam construir despreocupadamente, sem ter em consideração o património natural ou outras especificidades, porque se haviam de preocupar com caminhos ou trilhos; ainda para mais quando se livram da responsabilidade de manutenção dessas vias de comunicação. Desta forma "matam dois coelhos numa mesma cajadada": ganham por via do licenciamento e impostos sobre as "edificações campestres" e poupam em despesas de manutenção...

Resta congratular-nos pela propalada livre circulação de pessoas e bens, tal como agradecer a liberdade de nos podermos deslocar! Obrigadinho!... Tal seria muito bom não fosse o facto de, na prática, tal se aplicar cada vez menos. Não é possível chegar ao Algarão da Goldra e a muitos outros sítios da geografia nacional. A liberdade de circular em caminhos públicos não se aplica em inúmeras circunstâncias... O contrário de estar vivo é estar morto e o contrário de liberdade é... deitarem-nos areia para os olhos. Porque "em terra de cegos quem tem um olho é rei".

Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)

Allarve (III)

Suburbanismo campestre

Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)

Quando se fala em desordenamento do território dificilmente se poderá olvidar o Litoral algarvio. O crescimento exponencial que a indústria turística registou, desde a década de 60 do século passado, acompanhado pelo correspondente incremento de outros sectores, de que destacamos a construção civil, é bastante conhecido e dado frequentemente como exemplo daquilo que se deveria evitar!... Conversas para “inglês ver” porque na verdade pouco ou nada tem mudado no que concerne a esta matéria. Senão vejamos: é certo que o campismo selvagem pós 25 de Abril acabou, tal como a construção ilegal sobre as dunas, entre outras aberrações, mas os atentados ambientais prosseguem a bom ritmo muitas vezes maquilhados sob roupagens mais “verdes”, “ecológicas” ou simplesmente “in”! Outras vezes, encaminhados tão-somente ao ritmo de “conhecimentos”, cunhas, subornos ou outras alcavalas. O dinheiro pode muito e no Algarve… Pois é: nesta região mudam-se os tempos e permanecem as vontades. Sobretudo a vontade de continuar o lucro fácil e de prosseguir o ordenhamento do território até que a galinha dos ovos de ouro excrete a última pepita, ou, melhor, a vaca dessacralizada espirre a última gota...
A propósito de “inglês ver”, espanta-nos que quer estes, quer outros povos, com particular destaque para o português (por óbvias razões geográficas), não vislumbrem aquilo que lhes é dado manifestamente ver num simples olhar à sua volta. Certamente não devem “olhar com olhos de ver” ou, então, têm visão selectiva e só vêm aquilo que lhes agrada ou interessa. Ninguém descortina a urbanização das colinas do Barrocal algarvio, inclusivamente nas linhas de cumeada?
A passagem da construção digamos “desadequada” para o Barrocal e para a Serra é um dado bem mais recente do que o fenómeno litoral e curiosamente bem menos focado (porque convém?). Será que estamos perante um processo em tudo idêntico? Primeiro degrada-se e destrói-se para, só depois, carpir os males que já estão feitos, colocar “paninhos quentes” sobre essas inevitabilidades ou, pura e simplesmente, limitar-se a tirar a água do capote; dissolver as responsabilidades por todos, pelos outros ou pelos tão famosos quanto indefinidos “eles”…
O crescente interesse que o interior do Algarve tem suscitado, de há alguns anos a esta parte, consubstancia-se nomeadamente no aumento significativo do número de casas nas colinas do Barrocal e nas serras do Caldeirão e de Monchique. Este fenómeno, para além de alterar marcadamente a paisagem, é causador de diversos impactes ambientais e não só…
O Cerro da Bita e a gruta homónima trata-se apenas de um exemplo (focado na posta anterior) de como as pressões económicas e demográficas se fazem sentir também e cada vez mais no “Algarve profundo”. Quem percorrer a Via do Infante dará conta certamente da proliferação de casas que se encontram indiscriminadamente distribuídas pelas vertentes e linhas de cumeada. Não será assim? Caso não vislumbre o descrito recomenda-se fortemente a consulta de um oftalmologista, pois até o Mister Magoo detectaria certamente algo de “anormal” nesse profícuo pontilhado de edificações.
De resto, olhar e ver ou não ver será tarefa de somenos interesse: importante será constatar o ritmo crescente a que as transformações se processam e fazer algo. Que mais não seja compreender e denunciar tal situação. O fenómeno em curso não augura um futuro animador para a região no seu todo e, muito menos, para o carso superficial, o endocarso e aquíferos associados. A destruição do património natural processa-se paulatinamente mas de forma irreversível.
Outro exemplo bem expressivo do assunto em causa - a construção desregrada no interior do Algarve - é, sem dúvida, aquele que se verifica na cumeada que se estende entre os vértices geodésicos Goldra e Nexe, e suas imediações. O problema da urbanização nessa área traduz-se, para além do inegável impacte visual, na dificuldade ou impossibilidade de circulação de pessoas, entre outras problemáticas tão ou mais gravosas… A “coisa” atingiu um ponto em que actualmente não se consegue aceder ao Algarão da Goldra!
Miguel Telles Antunes (1986)* refere a existência de uma brecha ossífera no carso da Goldra. Esse depósito sedimentar deu pedras talhadas em quartzo, quatzito, sílex e grauvaque, bem como restos de mamíferos e alguns (poucos) gastrópodes. Entre as espécies identificadas destacamos a presença de Elefante (Cervus elaphus LIN., 1758), que traduz diferentes características biogeográficas… A brecha forneceu alguns instrumentos pré-hitóricos pouco representativos que não permitiram definir a indústria a que pertencem, mas o conjunto parece reportar-se ao Paleolítico médio, Paleolítico superior ou Epipaleolítico. A probabilidade deste depósito ser do Mousteriano antigo (interglaciar Riss-Würm ou início do Würm) é, no entanto, grande.
Tudo leva a crer que o local se tratava de um “refúgio” de caçadores. Certo é que a vista para o mar devia ser tão ou mais esplendorosa do que nos dias de hoje, esses nossos antepassados circulavam sem barreiras e os vestígios por eles deixados foram esparsos para não dizer insignificantes. Nessa altura não se falava de sustentabilidade, a vida era pura e simplesmente sustentável. O mesmo não se poderá dizer, daqui a uns milhares de anos, do legado com que iremos “brindar” as gerações vindouras. Hoje os campos estão a ser progressivamente vedados e transformam-se irremediavelmente em áreas suburbanas, descaracterizadas e feias.
Tal como se passou há alguns anos atrás com a estranha proliferação das arquitecturas ditas tipo “maison” (cubos com acesso directo ao primeiro andar através de escadaria) ou tipo “WC” (variante forrada a azulejos de casa de banho), talvez os actuais proprietários das “casinhas de campo” dos nossos dias vislumbrem as profundezas dos erros em que incorrem. A arquitectura característica do emigrante de outras eras foi sofrendo remodelações à medida que os donos se inteiravam da pirosice do fenómeno, mas quando os actuais “felizardos” se aperceberem que a saloiada em que estão metidos é um grito tão ou mais manifesto de ignorância e desrespeito ambiental o que irão fazer? Abandonar os seus jardins kitch e deixar que o mato volte a invadir o terreno? Não será tão simples...

Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008) Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008) Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008) Goldra (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)

21/08/2008

Allarve (II)

Algarve
Incursões de Verão


[FORA DE PORTAS ● jornal Forum Ambiente nº 141, 8 de Agosto de 1997]

Algarão da Bita (Algarve) © Pedro Cuiça (1996)

Sol, calor, praia e mar. A tradicional imagem de marca do Algarve que faz com que muitos continuem a escolher este destino de férias. No entanto, a degradação do Litoral provocou acesas críticas à qualidade do turismo da região. A alternativa volta-se agora para a Serra e para o Barrocal algarvios. Será que se irão repetir os erros do passado?

Desde há uns anos que o Algarve tem sido vítima de um fenómeno bastante sui-generis. Durante o Verão é invadido por turistas nacionais e estrangeiros em busca das míticas praias e da fama granjeada como destino de eleição. O resto do ano ficam-se a carpir os males da região. As infindáveis filas de trânsito para chegar até à praia (com o ruído e o stress inerentes), a descaracterização de diversos núcleos urbanos (de que Quarteira constitui um caso paradigmático) e da paisagem (sobretudo no Litoral). O certo é que todos os anos o fenómeno repete-se e invariavelmente o mês de Agosto é o período eleito pela maioria dos veraneantes.
Quem se encontra “a-banhos” no Algarve geralmente desconhece as riquezas escondidas no Barrocal e na Serra da região. Aqueles que se encontram a gozar as férias frequentemente ficam-se pelas tórridas praias e pelos neóns das noites do Litoral algarvio.
No entanto, como as marcas da modernidade já fizeram das suas, nesse Litoral sobre-explorado, a Serra e, sobretudo, o Barrocal começaram a atrair os investigadores. O turismo rural, o ecoturismo, as actividades de ar livre e outras novas formas de abordagem do meio surgem nesses terrenos ainda pouco explorados e cada vez mais constroem-se casas nas colinas do Barrocal e nas serras do Caldeirão e de Monchique, alterando marcadamente a paisagem.
Quem percorre a Via do Infante certamente já deu conta da proliferação de casas que se encontram indiscriminadamente distribuídas pelas vertentes e linhas de cumeada.
O Cerro da Bita (119 m), situado a sul da Via do Infante, constitui um bom exemplo das pressões económicas e demográficas que se fazem sentir no “Algarve profundo”. Na beira da estrada que liga Moncarapacho a Estoi (EN 516), no Algarve Central, a cerca de três quilómetros a poente da aldeia de Moncarapacho, essa pequena elevação passaria desapercebida, a não ser pela presença de antenas e marco geodésico no cimo da mesma. No entanto, nesse local localiza-se um lapiás de pequena extensão mas de grande beleza e uma gruta com desenvolvimento considerável (tendo em conta a extensão das cavidades do distrito).
De facto, a vertente norte e parte das encostas leste e oeste do Cerro da Bita encontram-se decoradas por bonito lapiás. Entre os afloramentos desenvolve-se um denso matagal que atinge, em certos locais, metro e meio de altura. Em contraste, nas restantes vertentes o lapiás não aflora e o matagal dá lugar a vegetação esparsa onde se destaca o tomilho.
O Algarão da Bita e o lapiás que aflora no local não seriam dignos de noticia, pois existem diversos exemplos semelhantes na região, não fosse o facto de estarem a ser cercados pelo progresso. A oeste da Bita implantou-se uma urbanização semelhante a tantas outras por demais conhecidas no litoral, no topo do serro edificaram-se antenas e construções de apoio (a juntar ao tradicional vértice geodésico ai existente) e uma estrada rasga o monte até ao seu topo, a sul a EN 516 marca o limite e a norte encontra-se uma casa e infra-estruturas agrícolas a poucos metros da gruta e lapiás.
Por outro lado, a actividade humana manifesta-se pela presença de detritos, destruição de vegetação e afloramentos, perturbação da fauna e ruído. A entrada da Gruta da Bita encontra-se parcialmente obstruída por um grande bloco aí colocado por mão humana, junto da entrada uma pintura sobre a rocha anuncia o código de inventário que lhe foi atribuído pelo Centro de Estudos Espeleológicos e Arqueológicos do Algarve (CEEAA) e o interior está bastante vandalizado.
As acções que se empreenderam na Bita e terrenos envolventes já se fazem sentir há vários anos tornando-se difícil, para aquele que não tenha presenciado a evolução do local, ordená-las temporalmente.
Também seria tarefa de somenos interesse. O importante será constatar o ritmo crescente a que as transformações se processaram, o que não augura um futuro animador quer para o lapiás, quer para o Algarão da Bita. Aliás, o importante será extrapolar estas conclusões para a região, pois algo de semelhante se passa um pouco por todo o lado. As pressões estão aí para ficar.

14/08/2008

Allarve (I)

Cá mone

Praia de Faro (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)

Tal como alguém se lembrou de acrescentar uma letra ao nome “Algarve” (do árabe “Al-Gharb”, a ocidente) dando origem à designação com sonoridade british “Allgarve” (e significado algo dúbio!), também nós, face ao orden(h)amento do território da região, resolvemos não acrescentar mas subtrair uma letrinha apenas… Porque não Allarve em vez de Allgarve ou Algarve? Sim, porque de alarvices está a região farta. A começar pela nova denominação newlook do Algarve tão ao jeito de algumas pretensas elites modernaças, pobremente pensadoras e ricamente idiotas… Mas antes isso. Pior são a construção caótica, inicialmente na Beira-Mar e agora no Barrocal (ao estilo pseudo-campestre com toque sub-urbano), a monocultura de relva dos campos de golfe ou as cicatrizes e a poeira provocadas pelas pedreiras que ferem alarvemente a paisagem... E isso é apenas uma amostra do que se vê, oculto dos olhares ficam os impactes sobre o endocarso e os aquíferos subterrâneos da região. A prova provada da insustentável leveza do ser, grosseiro, estúpido e alarve. Mas a malta pouco se interessa por estas "inevitabilidades", o que realmente importa é possuir uma "barraca" instalada em domínio público marítimo, uma "casa de campo" com piscina idealmente no cimo de um monte ou simplesmente passar umas férias a banhos (ou banhadas), não é? Haja dinheiro...

Via do Infante (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)
Matos da Nora (Algarve) © Pedro Cuiça (2008)

[P.S. (26/08/2008): E já agora, porque não dinamizar também outras regiões do país? Termos, por exemplo, um My-nho (em vez de Minho), uma Xtream-a-dura (em vez de Estremadura) ou um All-en-Tejo (em substituição de Alentejo).]

01/08/2008

Espeleocentrismo

Sicó © António Lago Queirós (2008)

Retomando a questão colocada na "posta" Geoconservação, de 30 de Julho, - As pedras têm direitos? - vem à colação o livro que me levou a escrever essa peça jornalística sobre a conservação do património geológico: A Nova Ordem Ecológica (Edições Asa, 1993) [Le Nouvel Ordre Écologique (Éditions Grasset & Fasquelle, 1992)]. Trata-se de uma obra do filósofo francês Luc Ferry que apresenta uma abordagem inovadora acerca da conservação da natureza ou, melhor, do direito da natureza.
Para nós, Modernos (…) parece-nos muito simplesmente insensato tratar os animais, seres da natureza e não da liberdade, como pessoas jurídicas. Consideramos óbvio que só os últimos são, por assim dizer, «dignos de um processo». A natureza é, para nós, letra morta. Em sentido próprio: ela não nos diz nada porque deixámos há muito - pelo menos desde Descartes - de lhe atribuir uma alma e de a crer habitada por forças ocultas. Ora, a noção de crime implica, aos nossos olhos, a de responsabilidade, supõe uma intenção voluntária - ao ponto de os nossos sistemas jurídicos reconhecerem as «circunstâncias atenuantes» em todos os casos em que a infracção à lei é cometida num «estado secundário», sob o domínio da natureza inconsciente, portanto à margem da liberdade de uma vontade soberana. Verdade ou novo imaginário que fará, também ele, sorrir as gerações futuras? Bem poderá acontecer, com efeito, que a separação do homem e da natureza, pela qual o humanismo moderno foi levado a atribuir apenas ao primeiro a qualidade de pessoa moral e jurídica, não tenha sido senão um parêntesis, em vias de voltar a fechar-se.
A abordagem da questão do direito dos objectos naturais tem como ponto de partida os pontos de vista do conceituado professor Christopher D. Stone. Em 1972 aparece nos EUA, na seríssima Southern California Law Review, um longo artigo do professor Stone intitulado: Shoul trees have Standing? Toward legal rights for natural objects. (“As árvores deverão ter um estatuto jurídico? Rumo à criação de direitos legais para objectos naturais”). “A argumentação de Stone a favor do direito dos objectos não deixa de ter interesse. O seu primeiro momento, que agradará aos discípulos de Tocqueville, consiste em recordar o raciocínio, ritual nesta literatura ecologista, segundo o qual o tempo dos direitos da natureza teria agora chegado, após o das crianças, das mulheres, dos Negros, dos Índios, até mesmo dos prisioneiros, dos loucos ou dos embriões (no quadro da investigação médica, senão no das legislações sobre o aborto…). Em suma, trata-se de sugerir que o que parecia «impensável» numa época, em tantos aspectos próxima da nossa, se tornou na evidência de hoje. E Stone cita, com justeza, as setenças de certo tribunal judicial que, ainda no séc. XIX, considerava que os Chineses, as mulheres e os Negros não eram, em grau aliás diversos, sujeitos de direito.
Esta forma de pensar, de certo modo polémica e criticada por muitos, veio colocar ou recolocar uma série de questões acerca das concepções filosóficas do homem perante o meio ambiente e sobre si mesmo. “Mas é num plano quase «ontológico» que as interrogações se tornam mais prementes: é que a astuciosa construção jurídica dissimula uma tomada de posição filosófica discutível, a favor de um regresso a concepções antigas da natureza. Estes pensadores que se pretendem, em sentido próprio, «pós-modernos», filósofos ou juristas do «após-humanismo», não comungam estranhamente de uma visão pré-moderna do mundo, onde os seres da natureza reencontram o seu estatuto de pessoas jurídicas?
(…)
O debate sobre o direito das árvores, das ilhas ou dos rochedos,
[dos carsos e das grutas] para além das suas bizarrias, que dificilmente se imagina que escapem a Stone e aos seus amigos, não tem outro motivo: trata-se de saber se o homem é o único sujeito de direito, ou se, pelo contrário, aquilo a que hoje se chama «biosfera» ou a «ecosfera» [ou, porque não, a «geosfera»], e que outrora se designava por «cosmos» também assim pode ser considerado. O homem não seria neste caso, sob qualquer ponto de vista - ético, jurídico ou ontológico -, senão um elemento entre outros, a bem dizer o menos simpático, por ser menos simbiótico neste universo harmonioso e ordenado onde ele não pára, pelos seus excessos, pelo seu «ubris»*, de introduzir a mais incómoda desordem. Não se imporá o recurso a um novo «contrato natural» que ponha esse orgulho no seu lugar e restabeleça a harmonia perdida? Não é, assim, de uma visão humanística para uma visão cósmica do direito, que esta pré-modernidade nos convidaria a passar?
Segundo uma terminologia já clássica nas universidades americanas, deve-se opor uma “ecologia profunda” (deep ecology), “ecocêntrica”, “biocêntrica” ou “geocêntrica”, a uma “ecologia superficial” (shallow ecology), ou “ambientalista”, fundada no velho antropocentrismo. Nesse contexto, talvez devêssemos avassar para um posicionamento mais “espeleocêntrico” ao invés de posturas assentes no espeleosuperficialismo…

Península de Lisboa © Pedro Cuiça (2006)

[* “Ubris” é um substantivo grego que significa “desmesura”.]

Recolha de sucata

PNSAC © Pedro Cuiça (2003)

Ainda sobre a questão do lixo, entulho e sucata largados fora de portas, geralmente ao longo de caminhos ou estradas, mas também nos sítios mais improváveis, lembramos uma pequena notícia, publicada no jornal Forum Ambiente (nº 289, de 27 de Junho de 2000), sobre o fenómeno no Parque Natural das Serras d’Aire e Candeeiros (PNSAC). Um exemplo que se repete ao longo dos anos e é tão actual hoje como há uma década atrás. Este é mais um exemplo de que existem numerosos assuntos recorrentes no que concerne à preservação/conservação da natureza ou, melhor, à sua falta.
Recolha de Sucata
A sucata depositada nas encostas das Serras de Aire e Candeeiros, junto à Estrada Nacional 1, no concelho de Alcobaça, já começou a ser recolhida pelos serviços de limpeza da Câmara local, sobre supervisão do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros (PNSAC). O lixo e a sucata estão a ser transportados para o aterro da Associação de Municípios do Oeste e a sucata vendida a sucateiros. Contudo, esta operação não prevê recolher a totalidade da sucata que está ao longo daquela estrada, entre Porto de Mós e Benedita, visto que o PNSAC ainda está em negociações com um dos proprietários para retirar as carcaças de automóveis aí existentes.
PNSAC © Pedro Cuiça (2003)

Conservação de pedras!

Património geológico
As pedras também se conservam

[FORA DE PORTAS ● jornal Forum Ambiente nº 289, 27 de Junho de 2000]

Cantábria © Pedro Cuiça (2007)

Dar um passo marcante na classificação, conservação, divulgação e valorização do património geológico foram os objectivos que levaram à criação do grupo português da associação ProGEO.

O Grupo Português da Associação ProGEO reuniu-se no passado dia 16 de Junho, para eleger os seus representantes, definir o modo de funcionamento do mesmo e delinear qual a metodologia de trabalho a ser seguida. O grupo, que se formou tendo em vista o conhecimento e a conservação do património geológico português, reuniu-se no Departamento de Ciências da Terra da Universidade de Coimbra.
“ProGEO” é o nome da Associação Europeia para a Conservação do Património Geológico, instituída em 1992 com o objectivo de promover e implementar a “geoconservação”.
O conjunto de promotores do grupo nacional ProGEO é composto por Carlos Marques da Silva e Mário Cachão (Universidade de Lisboa), José Bilha, Graciete Dias, Renato Henriques e Rosa Pereira (Universidade do Minho) e Liliana Povoas (Museu Nacional de História Natural).

“Geoconservação”
Portugal possui um importante património geológico, ou seja, é rico em geo-recursos culturais ou geomonumentos (alguns de reconhecido valor supranacional), mas que estão completamente desprotegidos do ponto de vista legal. Na legislação portuguesa os “geótopos” não têm qualquer existência formal, ao contrário do que acontece com os “biótopos”. O conceito de recurso geológico está contemplado, mas refere-se apenas a recursos económicos existentes na crusta terrestre: recursos hidrotermais ou geotérmicos, jazigos minerais ou águas de nascente. Os recursos geológicos de índole cultural, que são igualmente recursos não renováveis e susceptíveis de aproveitamento económico, não são considerados.

Legislação em falta
Particularmente vulneráveis por não serem contemplados, nem na legislação sobre conservação da natureza, nem na legislação sobre exploração de recursos geológicos, os geo-recursos culturais estão assim à mercê da destruição, muitas vezes devido à ignorância ou incúria, outras vezes intencionalmente, mas sempre de forma impune.
Ao contrário do que acontece com a arqueologia, em que é obrigatória a comunicação dos achados e a autorização para escavação, não existem normas no tocante à geologia (nomeadamente sobre a recolha de minerais ou fósseis). Por outro lado, enquanto o espólio arqueológico é propriedade do Estado, o património geológico é “de quem o apanhar”. A comunicação de achados paleontológicos, a autorização para recolha ou escavação, a posse ou venda de espécimes (por exemplo concreções), nada está enquadrado por legislação). Esta é completamente omissa, deixando o caminho aberto à degradação do património geológico. Os instrumentos legais em vigor nas áreas protegidas são demasiado vagos para abarcarem a geologia de forma adequada. A criação da figura de “geomonumento” ou “geo-recurso” cultural evitaria a necessidade de recorrer à insuficiente legislação existente para proteger as ocorrências geológicas.
O património geológico também deve ser alvo de urgente inventariação e classificação, assim como de uma adequada divulgação junto do público. O Museu Nacional de História Natural tem vindo a desenvolver diversas iniciativas tendentes à integração de diversas ocorrências consideradas geo-recursos culturais, numa estrutura inovadora que designou “Exomuseu da Natureza”.

Algar © DR

[1/08/2008: Quando falamos de património geológico e de geoconservação não podemos esquecer as especificidades e particularidades do património geo-espeleológico. Este, tal como o património geológico, também deve ser alvo de urgente inventariação e classificação, assim como de uma adequada divulgação junto do público. Tarefas que devem ser executadas com tanta determinação quanto igual ponderação, com vista a que a preservação/conservação do endocarso não seja colocada em risco precisamente por ser alvo de uma desadequada divulgação/promoção. Difícil equilíbrio que deve ser discutido no circulo restrito dos espeleólogos, mas também alargar-se a debates mais amplos que envolvam investigadores de diversos ramos do saber e público em geral. O cadastro das cavidades existentes em território nacional constitui um instrumento essencial para uma adequada gestão do património geo-espeleológico. Só desta forma será possível efectuar uma gestão racional destes geo-recursos culturais…
P.S.: Nesta matéria, convém ler o post Geo-conservação, de 30 de Julho).]