21/07/2011

As casas dos espíritos

Fusão de imagens como nos "sonhos" dos xamãs - Ensaio Mulher Yanomani, autoria: Claudia Andujar.

Um grupo de cientistas brasileiros visitou, pela primeira vez, algumas cavernas consideradas sagradas pela etnia ianomâni situadas na região do Alto Rio Negro (Amazonas). Segundo a notícia de Isabel Fraga publicada na revista Ciência Hoje, a antropóloga Maria Inês Smiljanic, da Universidade Federal do Paraná, defende que o povo ianomâni possui concepções xamânicas nomeadamente no que concerne à sacralidade de determinados locais que terão sido criados pela divindade Omawe como casas para os hekula - espíritos de plantas, animais e seres mitológicos. Para essa antropóloga: "Os locais de moradia dos espíritos devem ser respeitados, pois da boa vontade destes depende toda a vida sobre a terra. Essa ideia não se refere especificamente às cavernas, mas, como há predominância de alguns espíritos em certas regiões, pode ser que o local de moradia de alguns espíritos coincida com a presença de alguma caverna." Daí a necessidade, pelo que pensam os ianomânis, de se realizar um ritual de protecção, conduzido pelo cacique Joaquim Figueiredo, de modo a que os espíritos pudessem "reconhecer o cheiro e o visual do homem branco, que poderia ser visto como ameaça". Na área correspondente ao Paque Nacional do Pico da Neblina, onde se situam terras ianomâni, não são permitidas actividades turísticas e o posicionamento dos índios não suscita quaisquer dúvidas: "não querem abrir as cavernas para visitação turística, pois muitas delas são sagradas para esses povos". E fazem muito bem...

20/07/2011

Vida Subterrânea


"As luzes pulsaram e mudaram de cor... assim como tudo à minha volta! Voltou a ser tudo escuro... Ah, estamos debaixo do solo... é um planeta onde a Vida só pôde desenvolver-se nas suas entranhas!
Que organismos eram aqueles? Moviam-se lentamente e tudo parecia uma cena em câmara lenta! Que criaturas mais estranhas... são pequenas e não têm olhos, movem-se lentamente arrastando-se neste túneis que cavaram. Lambem as paredes cobertas de microorganismos que se alimentam da química destas rochas..." (Lin Yun, 2011; p. 75-76)*

"Finalmente é de referir os organismos que vivem nos poros das rochas a vários quilómetros abaixo da superfície da Terra, descobertos em minas. Estes organismos obtêm energia não do Sol que nunca atinge estes locais, mas das reacções químicas entre as rochas e a água aqui presente. Retiram nutrientes dos minerais que constituem as rochas e dióxido de carbono do ar. As necessidades destes organismos são totalmente preenchidas pelas condições que se pensa existirem no subsolo marciano, tornando pois mais plausível a existência deste tipo de vida em Marte." (Lin Yun, 2011; p. 78)*

"Na realidade, as visitas ao planeta Marte feitas pelas sucessivas sondas que sobrevoaram ou pousaram na superfície de Marte excluem a possibilidade de existência de seres vivos complexos, pelo menos à superfície do planeta. Não é contudo de excluir a possibilidade de existência de vida microscópica subterrânea." (Lin Yun, 2011; 94-95)*

"O subsequente desaparecimento da água líquida superficial não exclui a possibilidade de que alguns desses seres se tenham adaptado às actuais condições físicas e sobrevivam no subsolo de Marte." (Lin Yun, 2011, p. 97)*


*LIN YUN, João - Vida no Universo. Editorial Presença, Queluz de Baixo, 2011.

14/07/2011

E agora, a LUA!...




Porque por estas noites está (quasi) Lua Cheia e porque, na sequência dos últimos posts, estará na altura de inter-relacionar algumas das temáticas afloradas vamos recorrer a uma obra da autoria de Moisés Espírito Santo para tal efeito: Cinco Mil Anos de Cultura a Oeste - Etno-história da Religião Popular numa Região da Estremadura (Assírio & Alvim, 2004). Pode parecer estranho num blog sobre espeleologia falar acerca da Senhora da Conceição, da Serpente, da Caverna enquanto "Ventre" e, agora, da Lua mas na verdade fará mais sentido do que, à primeira vista, possa parecer. Aproveitemos, então, a luminosidade selenita do plenilúnio que se anuncia, nesta noite ventada de Norte, para deixar algumas frases soltas desse magnífico tratado de Espírito Santo. Noutra Lua, na qual disponha de mais tempo para a escrita, tentarei ir mais além no assunto...


"A Senhora ibérica da Conceição/Concepción - a autêntica Senhora da Conceição popular - é a herdeira directa do mais antigo culto da Magna Mater criadora, a Lua-Mãe em sintonia com a Terra-Mãe." (Espírito Santo, 2004; p. 12)

"O protótipo da lenda portuguesa da Moura Encantada - que é da cultura fenícia ou púnica - foi criado a partir da palavra m'wra ("luzeiro, sol ou lua")." Espírito Santo, 2004; p. 79) Segundo o autor, essa palavra m'wra (maora) tem igualmente afinidades com mowrh (mauora) com o significado de "cova, caverna" e, curiosamente, "nudez", entre outras significações.


"A Senhora da Conceição é a que concebe, a que engendra, a que dá à luz. O nome é entendido de modo activo, como um agente com iniciativa de conceber. (...) Ela é a da Concepção." (Espírito Santo, 2004; p. 102)
"Esta invocação e esta imagem foram o melhor caminho para se passar do culto matriarcal da Magna Mater, da Criadora para o de Maria." (Espírito Santo, 2004; p. 105)

"As imagens populares da Conceição (a que concebe), além de terem um menino, identificam-se pelo crescente lunar, por uma serpente aos pés (por vezes, a serpente enrola-se ao busto) e um diadema de doze estrelas. O crescente lunar aos pés e a serpente são os sinais identificadores da "verdadeira imagem" da Conceição. Nas espanholas e alentejanas o crescente é larguíssimo, desproporcionado relativamente à imagem (também evoca chifres de bovino); geralmente é postiço ou amovível, de modo que, aquando das procissões, tira-se para não tocar nos acompanhantes." (Espírito Santo, 2004; p. 107)


"A serpente das imagens da Conceição (a que concebe) é um símbolo da Magna Mater. Segundo as crenças antigas, a serpente reproduz-se por partenogénese (engendra filhos por sua única iniciativa, sem participação masculina) e é imortal, porque muda de pele. Por isso, é um avatar da Lua e da Terra que também mudam, morrem e renascem." (Espírito Santo, 2004; p. 108)

"O crescente lunar da Senhora da Conceição denuncia que esta sucedeu ao culto da Lua considerada a autora da procriação humana e animal e dos ritmos naturais. Em Portugal, o culto à Lua durou até ao século XX como veremos, e é de origem oriental (babilónica, fenícia, egípcia e púnica). (...) Todas as antigas religiões do Mediterrâneo (excepto a romana oficial) veneravam a Lua. Era a autora da procriação humana, animal e vegetal. No Próximo Oriente foi antropomorfizada com imagens e nomes próprios: Sin, Istar, Astarté, Ísis e, em Cartago romanizado, Celestis, representadas como uma mulher com um crescente lunar sobre a fronte. A Senhora Ibérica da Conceição/Concepción (a que concebe) é a sua herdeira directa." (Espírito Santo, 2004; p. 109)

"Para os lusitanos, a Lua foi uma potência divina. Há trinta ou cinquenta anos, o povo português ainda rezava à Lua." (Espírito Santo, 2004; p. 178)

"O morro mais elevado da serra dos Candeeiros (520 metros) chama-se, segundo consta na Cartografia militar, Monte da Lua e as colinas em volta deste, Serra da Lua. (...) Foi a serra da Lua como a de Sintra." (Espírito Santo, 2004; p. 381)


13/07/2011

A atracção... (II)

Há cerca de duas semanas fui abordado por um companheiro de actividades de montanha que me telefonou indagando sobre um artigo que eu teria escrito, e que se encontrava na internet, sobre a Gruta do Abade. Ele estava a elaborar um plano de resgate para a área da Arrábida e gostaria de saber mais pormenores sobre essa cavidade, acontece que, como lhe expliquei desde logo, nunca escrevi sobre a Gruta do Abade! No entanto, ele assegurava-me que tinha lido um artigo acerca dessa gruta assinado por mim, no qual se falava de uma cidade subterrânea, com iluminação "própria", um povo troglodita e outras estranhas alusões... Fiquei bastante preocupado! Depois de uma busca na internet cheguei rapidamente à conclusão que face ao conjunto de prints que lhe tinham sido entregues, incluindo alguns do Spelaion sobre grutas da Arrábida, gerou-se um mal-entendido... De facto, existem diversos artigos e comentários on-line sobre a Gruta do Abade mas nenhum foi escrito por mim e também, de facto, essa gruta está envolvida por estórias do "arco-da-velha". Mas tal não será de espantar tendo em conta que o mundo subterrâneo sempre foi alvo de uma inegável atracção, nomeadamente por estar oculto e, por isso, envolto em mistério. O mundo subterrâneo, personificando o desconhecido, dá azo a inúmeras concepções alternativas, dá asas à imaginação, à geração de abundantes lendas e... historietas. Ao estilo dos caçadores e pescadores, as pessoas do campo que falam de grutas da sua região contam que estas vão dar "não sei onde" invariavelmente demasiado longe ou num onde manifestamente impossível de ser verdade. Curioso é verificar que pessoas pretensamente cultas também embarcam nessas cantilenas e ainda para mais em geografias difíceis de sustentar tais relatos como na Serra de Sintra! Por outro lado, a alusão a seres e habitantes das cavernas, desde duendes a mouras encantadas, para não falar de estranhos bestiários, como aquele que é apresentado no Mundus Subterraneus de Athanasius Kircher, são ainda hoje vulgares. Mais curioso ainda é constatar que muitos desses narradores, também ao estilo kircheneano, nunca entraram numa gruta ou, pelo menos, nas espeluncas que descrevem e pretensamente dizem conhecer. Estes tratam-se, sem dúvida, de fenómenos bastante interessantes que importa abordar com alguma profundidade e, portanto, voltaremos a esta fenomenologia um dia destes...

A atracção...

Não sei se deveria ter denominado este post "A atracção pelo mundo subterrâneo", "A vandalização do mundo subterrâneo" ou o "Invento mais ou menos subterrâneo"! Isto sobre o facto de ter deparado com a vedação de uma das Grutas de Leceia digamos... inutilizada. Não é que me espante com tais eventos tendo em conta que já me deparei com muitas situações tão ou mais grotescas ou "surrealistas": Gruta da Senhora, Gruta de Ibne Ammar, Solestreiras, Gruta do Fumo, Gruta de Salemas, Gruta de Salir do Porto, etc..
Atracção porque, à semelhança de outros casos congéneres dispersos pela geografia nacional e ao longo do tempo, o "pessoal" não resiste aos encantos ou mistérios de um buraco e ainda para mais cuja entrada esteja barrada por portão, gradeamento ou outra solução semelhante: é o fruto proibido! Vandalização porque é o que acontece a muitas das cavernas de fácil acesso e que começa, desde logo, pela destruição total ou parcial da solução adoptada para tentar impedir a entrada. Invento porque se trata frequentemente da invenção adoptada para, em nome de um intento bem-intencionado mas desde logo votado ao fracasso, adulterar a paisagem... A questão que se coloca, nesses casos, será: quanto tempo é que vai durar? A solução adoptada - seja um portão, um gradeamento, uma rede ou similares - entenda-se.
Para não se ficar a pensar que sou um mal-intecionado, concedo a hipótese dos senhores que fecharam a dita gruta terem agora adoptado esta solução pouco usual, de se "livrarem" de parte da rede, por terem perdido as chaves dos cadeados ou estes já não abrirem por estarem demasiadamente ferrugentos :) Afinal o trabalhinho está feito com tal primor - não se limitaram a abrir um buraco e entortar a rede de forma grosseira, e nem sequer deixaram os restos no terreno - que será de pensar que foi feito por gente conscienciosa. Antes isso... De resto, nas outras grutas aí existentes as vedações de rede vão-se mantendo! Mas justiça seja feita, em algumas delas também não constituem qualquer óbice à entrada nas mesmas ;-)

12/07/2011

Nas Profundezas do Sensível

Ainda acerca das Éticas e Estéticas da Terra, da relação do Humano com o Não-Humano, consigo mesmo, com o outro e com a Natureza como um todo de que se faz parte, é fundamental tentar uma aproximação ao pensamento antigo, às origens do sentir/pensar dos nossos ancestrais e, nesse particular, sobre as suas concepções do mundo, nomeadamente no que concerne ao mundo subterrâneo... Sobre essa temática, a obra de David Abram "A Magia do Sensível - Percepção e Linguagem num mundo mais do que humano", editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, revela perspectivas interessantíssimas e catapulta-nos para realidades "muito à frente" (ou atrás?). No capítulo 6, sobre "Tempo, Espaço e o Eclipse da Terra" convém destacar, no contexto das "Profundezas do Sensível", algumas passagens acerca do mundo sub-terra.


"A Emergência é uma das mais sagradas e mais amplamente difundidas crenças entre os nativos da América do Norte de hoje, embora seja particularmente evidente no Sudoeste. Na sua estrutura, a lenda da emergência do povo vindo de debaixo do chão, subindo geralmente por um caniço ou por uma árvore, imita a emergência do solo do milho e outras plantas cultivadas pelas tribos horticultoras do Sudoeste. O povo que sobe dessas profundezas em busca do sol e da chuva é como o milho crescendo através do solo. Mas a Emergência está também aparentada com o processo pelo qual todos os mamíferos, incluindo os humanos, nascem para este mundo emergindo da escuridão do ventre de suas mães para a vastidão da terra aberta. (...)
As cerimónias mais sagradas das tribos que habitam os pueblos têm lugar nos kivas, as câmaras subterrâneas, ou parcialmente subterrâneas, também chamadas "ventres" por grande parte do povo pueblo. Entra-se na kiva descendo por uma escada que passa por um buraco no tecto e, depois da cerimónia, sai-se da kiva subindo para a mesma abertura, a mesma sipapu, voltando a experimentar - e renovando - a emergência primordial ao sair do mundo subterrâneo - tocas, cavernas, canhões, pequenas depressões do solo e até pedras - são consideradas sipapu pelos povos pueblo, e recordam-lhes assim a sua origem debaixo do chão que agora os sustenta. Deste modo, a experiência individual do nascimento é relacionada com a emergência colectiva da vida de debaixo do chão. Similarmente, a morte dos homens, para os povos orais, é não somente um acontecimento pessoal, mas também uma transformação para reentrar na terra, um processo pelo qual a sensibilidade individual se abre para fora indo ao encontro do campo de sensações envolvente e mais-do-que-humano." (Abram, 2007; p. 224-225)

"Assim, nas palavras de Hehaka Sapa, ou Alce Negro, dos Sioux Oglala:

Tudo o que o Poder do Mundo faz é feito em círculo. ... O Vento, o seu maior poder, rodopia. As aves fazem os ninhos em círculos, porque a religião delas é a mesma que a nossa. O Sol nasce e põe-se em círculo. A Lua faz o mesmo, e ambos são redondos. ... Até as estações formam um grande círculo na sua mudança e voltam sempre mais uma vez para onde estavam. A vida do homem é um círculo de infância a infância e é assim em todas as coisas em que a energia se move. ..." (Adam, 2007; p. 190)


11/07/2011

Grutas...

"...Oh grutas frias / oh gemedouras fontes, oh suspiros. / De namoradas selvagens, brandas veigas, / verdes outeiros, gigantescas serras."
Almeida Garrett


Imagem do post A Gruta do blog Nelson Bloggado.

Batalha (II)

Depois de ter "devorado" o último livro de David Soares - Batalha - recomendo vivamente a sua leitura e devo dizer que só não fiquei surpreendido por ser mais uma obra surpreendente e fantástica... Deixo aqui um pequeno trecho para "abrir o apetite", vão ver que se poderá tornar num caso sério de "bibliofagia".

"O fruto que a serpente ofereceu foi o seu próprio veneno.

Uma inoculação de insurreição, uma poção de prosperidade, amanhada de propósito para abanar os ânimos adormecidos pelo sacratíssimo aprazimento.
Do ponto de vista da serpente, a criação celestial precisava, com urgência, de progredir para não estagnar e nada a despertaria com tanto dinamismo, com tanta potência, quanto uma dentada - se viesse com veneno, ainda melhor. Não foi à toa que a cobra foi considerada a mais sábia das criaturas do Éden oriental: a sua zurrapa zerumbáticodôntrica discissou a burrice barrenta para deixar à mostra o gérmen genial que nos séculos seguintes iria transformar a terra.
Tónicos neurotóxicos que, não nos conseguindo matar, nos deixaram mais perspicazes. Mais astutos. Veneno ofídico, espremido para cadinhos de pedra, amalgamado com aromas saboreáveis e libado como medicamento?
Como fármaco - cujo hierografito genérico é, ainda, um crisol e uma serpente?
Essa representação encerrava todos os homens intoxicados que, na alvorada da história, alucinaram imagens do futuro e as petrografaram nas paredes das cavernas. Encerrava todos os feiticeiros e físicos que perceberam o potencial paliativo da peçonha e a empregaram para sarar e para avançar as suas consciências." (Soares, 2011; p. 184)

Azulejo na Estação dos Caminhos de Ferro do Rossio: Pessoa e "O caminho da serpente" (Mestre Lima de Freitas, 1996)

A Concepção da Rocha

Santuários rupestres, incontornáveis da geografia do sagrado, as grutas surgem desde tempos imemorias como redutos naturais associados a cultos pagãos. Fenómeno retomado pelo cristianismo que se apropriou de alguns desses espaços para aí implementar outra forma de culto. Talvez o caso mais conhecido corresponda à Gruta de Massabielle (Pirenéus franceses) que, depois de alegadas aparições marianas atribuídas a Conceição (de "concepção"), passou a ser conhecida como "Gruta de Nossa Senhora de Lourdes". Mas os exemplos são inúmeros e Portugal também é pródigo em santuários cavernícolas: Lapa de Santa Margarida (Setúbal), Gruta de Nossa Senhora da Luz (Rio Maior), Capela de Nossa Senhora da Estrela (Redinha), Gruta de Nossa Senhora do Tojo (Abrantes), Gruta da Capela da Memória (Nazaré), etc.. Mas, neste particular, o que motivou este post foi a Gruta da Rocha (Carnaxide), situada na margem direita da ribeira do Jamor, no lugar do Casal da Rocha, nas vizinhanças de onde moro. Esta abre-se em calcários do Cenomaniano superior, à semelhança de muitas das cavidades naturais que ocorrem na Península de Lisboa e, nesse contexto, não se destaca das suas congéneres não fosse possuir uma história algo curiosa que culminou na edificação de uma igreja cujo altar-mor se situa precisamente sobre a mesma. Hoje em dia continua a celebrar-se missa nesse templo, realiza-se uma festividade anual e até existe uma Irmandade da Nossa Senhora da Conceição da Rocha mas poucos conhecem a existência de uma gruta nas suas fundações e da lenda que deu origem a tudo isso.



A primeira referência a esta gruta reporta-se à sua (re)descoberta, em 1822, e à estória que se seguiu ao suposto achamento no seu interior de uma "imagem de cerâmica envolta em pobre manto a delir-se de velhice e humidade": a Senhora da Conceição. Os eventos que se sucederam levaram à construção do Santuário de Nossa Senhora da Conceição da Rocha.
Na verdade, esta gruta já tinha sido descoberta há muito. Tal como tantas outras, suas congéneres da Península de Lisboa, foi utilizada como necrópole e abrigo, tendo sido encontrados ossos humanos e materiais pré-históricos (líticos e cerâmicos) atribuídos aos períodos Neolítico, Calcolítico e Contemporâneo. Não devemos ignorar que a escassos quilómetros se situam as Grutas da Quinta da Moira, as Grutas de Leceia e a Gruta da Ponte da Laje, para não falar das Grutas do Vale de Alcântara ou da Serra de Monsanto, entre outras. Aliás, existem registos (que tivemos oportunidade de confirmar em parte) que dão conta de sete abrigos/grutas nas imediações da Gruta da Rocha onde também foram recolhidos materias pré-históricos e históricos.




09/07/2011

Cova da Raposa

É um lugar à parte, no espaço e no tempo. Rodeado pelo vulgar, surge manifestamente um lugar invulgar, raro nos dias que correm, um locus especial. Já o era há muito tempo, muito antes de ter sido rodeado/cercado pela "civilização", por estradas, casas, barulhos motorizados!... Uma geografia ímpar desde logo pela geomorfologia marcada sob a forma de vale encaixado e pela densa mancha verde do arvoredo arbustivo, contrastante com os calcários cinza, onde se esconde um seco leito de ribeira à sombra do fresco emaranhado vegetal. No Inverno far-se-ão ouvir efémeras águas de escorrência mas, hoje, ao calor do estio apenas se escuta o zumbido de insectos voadores e a vegetação animada pela aragem. E contudo esse local, situado a uma vintena de quilómetros de Lisboa, subsiste na sua quase pureza ancestral, como que olvidado, alheio na sua altaneira vista sobre a ampla planura que se estende para poente. É um desses sítios recônditos, de difícil acesso ou cuja rústica aridez pedregosa manteve a modernidade afastada, precisamente pelos mesmos motivos que atraiu os antigos. Estes encontraram aí abrigo e certamente mais que isso... Hoje a sua presença inefável prova-se pelos testemunhos materiais aí encontrados sob a forma de restos osteológicos de humanos e de animais, instrumentos de sílex e fragmentos de cerâmica que remontam ao Paleolítico e ao Neolítico. Mas essa improvável existência inefável é tão presente quanto o inconfundível odor a raposa que aí se emana. Não será por acaso que a maior das três cavernas que aí surgem se chama "Cova da Raposa". Talvez aí não haja acasos...

08/07/2011

Batalha

Já passou bastante tempo desde que publiquei os posts "Toca(s) da Raposa" e "A Zorra Berrou" nos quais, para além das alusões a esse mamífero (!), fiz referência igualmente às obras A Conspiração dos Antepassados (2007) e Lisboa Triunfante (2008). Nessa altura afirmei que só me restava "aguardar com bastante expectativa a próxima obra de David Soares". Pois é, já tive não só a oportunidade de ler O Evangelho do Enforcado (2010) como terei o grato prazer de, dentro de poucos dias, ler a nova obra desse autor. O lançamento do seu novo livro - Batalha - irá decorrer no próximo dia 15 de Julho, às 19 horas, na FNAC do Centro Comercial Colombo.
Na página da editora Saída de Emergência podemos ler o seguinte comentário acerca deste novo trabalho: "Em Batalha, David Soares apresenta uma história em que os animais são protagonistas. Passado no início do século XV, Batalha é um romance sombrio, filosófico e comovente, que observa o fenómeno religioso do ponto de vista dos animais e especula sobre o que significa ser-se humano.
Batalha, a ratazana, procura por sentido, numa viagem arrojada que a levará até ao local de construção do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, o derradeiro projecto do mestre arquitecto Afonso Domingues. Entre o romance fantástico e a alegoria hermética, Batalha cruza, com sensibilidade e sofisticação, o encantamento das fábulas com o estilo negro do autor."

Éticas e Estéticas da Terra

Ontem, ao final da tarde, decorreu no auditório 3 da Fundação Calouste de Gulbenkian mais um evento no âmbito do ciclo de conferências "Ambiente, porquê ler os clássicos?". Este ciclo de seis conferências, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian através do seu Programa Gulbenkian Ambiente em parceria com a Embaixada dos Estados Unidos da América em Portugal, gravita em torno de seis obras literárias que pela sua importância e actualidade se transformaram em clássicos de ambiente. Segundo os mentores desta iniciativa: "Estes clássicos são obras que se impõem como referências incontornáveis no imaginário da cultura contemporânea em torno do ambiente. Cada livro transporta-nos, de forma singular, numa viagem de reflexão sobre a nossa identidade e o nosso compromisso com um futuro sustentável, em harmonia com a Natureza."
A primeira conferência, que decorreu no dia 6 de Maio, versou sobre a obra Walden ou a Vida nos Bosques (1854), da autoria de Henry Davis Thoreau, tendo sido apresentada por Viriato Soromenho Marques e comentada por Isabel Capeloa Gil. Ontem foi a vez do livro Pensar como uma Montanha (A Sand County Almanac, 1949), de Aldo Leopold, apresentado por John Baird Callicott e comentado por Maria José Varandas.
A razão de noticiar esta iniciativa no Spelaion prende-se precisamente com as temáticas da visão, da relação e da expressão/representação da e na Natureza por parte dos Humanos. De certa forma, continuamos na sequência de posts acerca da relação do Humano com o Não-Humano, consigo mesmo, com o outro e com a Natureza como um todo de que se faz parte... Nesse contexto, tanto Walden como Pensar como uma Montanha, sendo uma celebração do mundo natural, aproximam os leitores da Natureza através da estreita vivência no seu seio, preparando-os para sensitivos voos que os conduzirão a novas (ou, quem sabe, antigas) espiritualidades e éticas baseadas em visões holísticas, segundo Callicott, "incompatible with our Abrahamic concept of the world". Essa "toxic mix of biblic anthropocentric dominionism and consumerism" levou esse filósofo americano a defender a necessidade de primeiro destruir para depois construir uma nova metafísica, baseada nomeadamente na tentativa de acabar com as vigentes dualidades de modo a atingir a unidade na busca de uma mundividência sustentada. E, muito importante, como salientou Maria José Varandas: "A ética da Terra é também uma estética da Terra".

Quando o Xamã Voava

Ainda na sequência dos recentes posts publicados no Spelaion, não poderei deixar de destacar o lançamento, no passado sábado (dia 2 de Julho), do livro Quando o Xamã Voava - Sonho, Erotismo e Morte no Xamanismo, da autoria de Gilberto de Lascariz. Essa obra, com a chancela da editora Zéfiro, que foi apresentada pelo autor na Casa do Fauno (Sintra), versa precisamente, entre outras temáticas, sobre a ligação entre o xamanismo e a arte rupestre. Em contraposição ao "xamanismo light" de Michael Harner ou outros na linha do "xamanismo de trazer por casa", Quando o Xamã Voava remete-nos para a clarividência atávica de arcaicas práticas traduzidas nomeadamente na arte rupestre. Ao ponto do autor ter salientado na apresentação da obra: "mesmo que se perdessem todos os livros sobre xamanismo temos tudo registado nos santuários rupestres".
Na impossibilidade de resumir esta extensa obra de 490 páginas direi apenas que se trata de um texto marcadamente original, que foge a lugares comuns e às simplificações (para não dizer adulterações) a que muitos livros sobre xamanismo nos têm habituado. Este é um livro que, não temendo adentrar-se na natureza do fenómeno xamânico, procura trilhar os remotos e antiquíssimos caminhos dos nossos ancestrais. Quando começa "a perceber-se, finalmente, que muita da arte rupestre é essencialmente um conjunto de imagens recebidas em transe que dão forma visual às crenças subjacentes que enformam a prática extática do Xamanismo" (Lascariz, 2011; p. 96).

07/07/2011

Chamanismo en las cuevas paleolíticas

Pretensa imagem entóptica na Cueva del Castillo (Cantábria- Espanha).

Sobre a arte rupestre, as imagens entópticas e o xamanismo é bastante interessante a abordagem sumária apresentada pelo distinto pré-historiador francês Jean Clottes na palestra proferida no "40 Congreso de Filósofos Jovens" (Sevilha, 2003): "Chamanismo en las cuevas paleolíticas".
"La arqueología y la antropología física mostraron hace tiempo que las gentes del Paleolítico Superior, nuestros ancestros Cromañones, eran exactamente como nosotros. (...) Ellos y/o sus descendientes fueron los creadores de lo que llamamos arte rupestre. Puesto que muchas de esas pinturas y grabados fueron realizadas en las profundidades de las cuevas, donde nadie vivía, ya desde su descubrimiento la mayoría de los especialistas han coincidido en que respondían a un fin religioso y en que, a través de ellas, podíamos aproximarnos a algunas de las creencias de aquellas antiguas gentes. Se hicieron comparaciones con el arte rupestre de cazadores recolectores modernos existente en otras partes del mundo. La universalidad de la religiosidad humana, así como el hecho irrebatible de que pertenecemos todos a la misma especie, con las mismas faculdades, necesidades y anhelos, hacían posibles tales comparaciones.
Es una idea propuestra hace medio siglo (Eliade, 1951) que las religiones paleolíticas europeas podían ser chamánicas. La hipótesis fue desarrollada en años posteriores (particularmente por Lewis-Williams & Dowson, 1988). Antes de que se aplicara a lo que conocemos de las cuevas pintadas, tres series distintas de observaciones fueron tenidas en cuenta: los trabajos de neuropsicología acerca de los estados de consciencia alterada, las sociedades chamánicas en el mundo, y el arte rupestre de culturas chamánicas conocidas, como los San de África del Sur y numerosos grupos nativos americanos del Este de E.E.U.U.. En los 90, trabajé con Lewis-Williams para comprobar si la teoría podía ser aplicada o no al arte rupestre Europeo (Clottes & Lewis-Williams, 1996, 1997, 2001). Recientemente, Lewis-Williams ha desarrollado y expandido su modelo e ideas en un innovador libro (Lewis-Williams, 2002). (...)"
Para ler o artigo completo, consulte: http://www.nodulo.org/ec/2003/n021p01.htm.
Figura ornitomórfica com erecção na "Cena do Poço" da Gruta de Lascaux (Dordonha - França).

Imagens inclusas no texto: imagens teriomórficas da Gruta de Gabillou (Dordonha - França), em cima à esquerda, e da Gruta de Trois-Frères (Ariège - França), em abaixo à esquerda e à direita.

Imagens entópticas

Long forgotten dreams (III)

Long forgotten dreams (II)

Long forgotten dreams

06/07/2011

Sem palavras...

Arte rupestre da Cueva de la Pileta

Outras Artes...

A ideia de uma natureza viva, essa visão panteísta segundo a qual tudo na natureza está vivo, possui uma alma, proporcionando uma estreita ligação cósmica entre todos os seus componentes, revela ainda hoje reflexos profundos no inconsciente colectivo e na religião popular do nosso país (tal como no estrangeiro). Reflexos que se manifestam através de um rico "imaginário" em torno de penedos da fertilidade, fontes santas, mouras encantadas ou cavernas que encerram antigos tesouros... Essa dimensão "psíquica" da natureza demonstra que não é só necessário defender as rochas, os rios, as árvores ou os animais, é também fundamental empreender a defesa das tradições, como a vivência do espaço sagrado e do tempo mítico; mesmo que o conhecimento antigo se encontre "desenhado" na pedra, ainda que não se compreenda de todo ou em parte ;-) Deixo aqui duas curiosas imagens acerca desse "folk-lore" a que faço referência :) Trata-se de uma imagem com conotações teriomórficas, mais precisamente ornitomórficas, provavelmente de um xamã, da Cueva de la Serreta (Cienza, Murcia - Espanha), que já tive a felicidade de visitar, e uma mescla de mãos humanas e marcas tridáctilas (de uma gruta na Patagónia - Argentina).


Not for sail...

Como diz o conhecido ditado popular: "Quem é vivo, sempre aparece" :) Depois de mais de um ano sem novidades é certo que o Spelaion criou teias de aranha mas ainda não é desta que acabou e, também, não está à venda... Isto só demonstra que andámos "out there" ou "somewhere" e que, portanto, a vida não é feita só de buracos mas inevitavelmente estes, mais tarde ou mais cedo, (re)aparecem nas nossas vidas. Vamos lá ver se é desta que damos alguma continuidade às "postas" subterrâneas... Saudações espeleológicas ;-)