07/11/2012

GRUTAS DE LISBOA (II)


O trogloditismo

Os abrigos sob rocha e as cavidades subterrâneas, naturais ou semi-naturais, tal como artificiais, nas suas formas elementares, constituem, sem dúvida, a tipologia mais remota, rústica e simples de habitação humana, permanente ou estacional. É comum pensar-se que estes tugúrios foram abandonados nos alvores das civilizações agrícolas e sedentárias, constituindo essencialmente abrigos temporários, ou mesmo ocasionais, geralmente relacionados com determinadas actividades como o pastoreio e a guarda dos campos. Na verdade, continuaram a ser utilizados até hoje na península de Lisboa, como abrigo ocasional ou, inclusivamente, como habitação. As Grutas do Vale de Alcântara e as Furnas de Monsanto são, nesse aspecto, um excelente exemplo ao terem sido habitadas pelo menos até aos anos 60 do século passado. Mas ainda existem grutas que servem de abrigo extemporâneo ou temporário (ex. Gruta do Aqueduto) ou, como no vizinho concelho de Oeiras, de habitação permanente. As cavidades da Quinta da Moura (Oeiras) foram habitadas até ao ano de 2010, altura em que os ocupantes fora “desalojados” devido às notícias televisivas que deram a conhecer esses actuais exemplos de trogloditismo!
Em certos casos e regiões, como na península de Lisboa, os abrigos sobre rocha e as cavernas foram utilizados tal como se encontram na natureza, sem quaisquer modificações ou arranjos, sendo por isso designados de “abrigos naturais” s.l.. O engenho do Homem foi responsável, contudo, apelo afeiçoamento de algumas dessas habitações naturais através da introdução de melhoramentos, mais ou menos sumários, com vista ao aumento ou mais perfeito resguardo do espaço abrigado, merecendo então o nome de “abrigos semi-naturais”. Noutros casos, frequentes no concelho de Lisboa e limítrofes, conhecem-se diversos exemplos de cavidades escavadas pelo Homem, com o objectivo de servirem de habitação sendo, portanto, abrigos artificiais. Estas intervenções, no domínio da designada “arquitectura subterrânea”, aproveitaram as bancadas de rochas mais brandas do Cretácico para escavar espaços habitacionais e/ou para armazenamento.

Cavidade da Quinta da Moura (Oeiras) em 2002 (em cima) e em 2012 (em baixo) (PC © 2002, 2012)

As tão faladas furnas, cavernas ou grutas da Rua Maria Pia, de Alcântara ou do “Sertão”, que foram alvo de numerosas notícias no Diário de Lisboa e no Diário de Notícias, em Janeiro de 1938, constituem um bom exemplo de trogloditismo. Ao contrário das notícias tão sensacionalistas quanto incorrectas que foram veiculadas, comparando estas com Lascaux e adivinhando um espólio arqueológico que nunca surgiu, estas cavidades são artificiais: um claro exemplo de arquitectura subterrânea com fins habitacionais e/ou de arrumação. A sua localização é, por vezes, confundida com outras ocorrências situadas igualmente na margem esquerda do vale de Alcântara.


Rua do Loureiro (em cima) e afloramento onde se situam as Grutas do Sertão (PC © 2012)

Grutas do Sertão ( (DR © adapt. DN nº 25854, de 28/Jan. 1938)

As referências sobre a utilização das grutas de Alcântara como habitação são numerosas e também assinalam cavidades na margem direita do vale. Há mesmo quem afirme que aí viviam, ainda nos anos 60 do século passado, “imensas pessoas” (blogue “Rua dos Dias que Voam”, 21/Nov. 2004). Venância Ribeiro, uma mulher com mais de 70 anos que ainda em 2004 fazia fretes num mercado da cidade, contou que nos primeiros tempos chovia na furna de Alcântara onde viveu até pelo menos aos 20 anos de idade: "Acordávamos todos encharcados" (ibidem).
As Furnas de Monsanto também foram muito utilizadas como habitação. Segundo João Martins (comum. pessoal) a primeira ocupação do Bairro da Liberdade “está ligada à chegada de migrantes para a recente industrialização do vale de Alcântara implicando a fixação de população nesta zona de fronteira da cidade de Lisboa. É um conjunto populacional que tem as suas origens na primeira década do século XX, com uma ocupação precária de buracos na estrutura da inclinação da Serra do Monsanto, as chamadas “grutas””. Em 1947, ainda viviam pessoas nas furnas de Monsanto (Vieira, 2000).
A gruta de maiores dimensões da Pedreira da Serafina (Furna da Serafina V), onde chegaram a viver várias famílias, foi completamente atulhada e situava-se no extremo sul da pedreira (Rui Marques, comum. pessoal). As outras cavidades, situadas na base da escarpa dessa pedreira, e ainda visíveis, foram parcialmente obstruídas com terra e blocos e contêm carros abandonados no interior (ibidem).


Monsanto I (em cima) (PC © 2012) e trogloditismo (1947), provavelmente nessa cavidade (em baixo) (in VIEIRA, 2000)

A utilização das grutas não se limitava a habitação permanente, também eram usadas de forma esporádica nomeadamente por parte de criminosos e até como local de reuniões clandestinas no período do Antigo Regime. Por esses e por outros motivos é que grande parte das cavidades foram encerradas…




CUIÇA, Pedro - O Trogloditismo in Ameaças à Geodiversidade - Cavidades Subterrâneas do Concelho de Lisboa. Lisboa: UA, 2012. pp. 33-36.

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